quarta-feira, 28 de abril de 2010

Um século de amor

O sapato preto brilhoso que cobria seus pequenos e singelos pés de tamanho número sete foi a única lembrança que ficou de minha amada. Quando voltávamos de nossa lua de mel perdi o controle do carro, a forte chuva e a estrada mal conservada contribuíram para o acidente. Em segundos, vi a linda face de meu amor ser possuída por um susto e um desespero nunca antes visto. Seus olhos vermelhos perderam seu forte brilho. A partir daquele momento permaneceram fechados para sempre.

Aquela linda morena, com 1.50m de altura, pés pequenos, com apenas 30 anos de idade, que acabara de dividir uma noite espetacular comigo, não respirava mais. Seus pulsos não pulsavam. Seu coração não batia. Por um instante, lembrei do primeiro dia que a vi, abaixo da Linha do Equador, radiante como o sol equatorial que clareava Belém do Pará. Sua sensualidade me conquistou com o rodopiar de sua saia florida aos passos do carimbó. Quando dei por mim, não escutava mais sua voz, a menina tagarela, aquela que falava sem parar, em poucos minutos calou-se para sempre.

Hoje, estou em Madri, na Espanha, como tínhamos planejado. Sem a sua presença, o vazio, acompanhado da saudade, guia a minha vida sem sentido. Ao passar no centro histórico de Madri, viajo no tempo e remeto-me a nossa lua de mel em São Cristóvão, uma bela cidade histórica sergipana. Na janela da pousada, ouvíamos a voz inconfundível de Moraes Moreira cantando “Três Meninas do Brasil”. Mas a menina que mais amei não está aqui comigo. Porém, tenho certeza, onde estiver Raquel continua sentido meu amor, pois é verdade, o que bom dura pouco, mas o que é verdadeiro dura um século.

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Universidade Federal de Sergipe
Comunicação Social/Jornalismo
Trabalho Acadêmico - Produção e Recepção de Texto I
Profª. Mariana Salerno

Tamanho não é documento

Pequena como uma ameixa, linda como uma rosa, assim é a Raquel, mulher por quem sou arretado de paixão. A danadinha é linda de morrer, mas é uma taramela, tagarela demais. Sua língua é maior que uma carreta, em compensação, seus pés são minúsculos como um botão. Ela calça sapatos número sete, isso mesmo, número sete e, olha que ela não é de nenhum país do oriente, é uma cabocla lá da Amazônia, que gosta de tomar açaí, sorvete de cupuaçu e dançar carimbó.

Foi amor à primeira vista, está certo que entre as dançarinas do grupo de carimbó ela foi a última que vi, seus 1.50m de altura fez com que ficasse escondida entre as outras dançarinas, contudo, aqueles olhos vermelhos chamaram minha atenção. Falei pra mim mesmo: mulher de olhos vermelhos deve ser um diabo de mulher. Daí ficamos sintonizados na frequência desse olhar até hoje.

Fui laçado de verdade. Casamos, uso um anel dourado no anelar esquerdo, mas têm horas que queria ser igual aos patos, nasceram de dedos cruzados justamente para não colocar aliança. Eu e meu amor moramos em Madri, na Espanha. Sentimos saudades do Brasil. Sempre olhamos as fotos de nosso casamento. A minha florzinha naquele vestido enorme, cheio de panos, tentando se equilibrar em seus pequeninos pés. Linda e radiante, com 30 anos de idade e um sorriso de menina. Nossa lua de mel foi de fato um mel, nos lambuzamos nos prazeres da paixão, tudo isso por apenas R$100,00. Ainda rolou um delicioso vinho francês, “três meninas do Brasil” na voz de Moraes Moreira como fundo musical acompanhando nossos gemidos que quebraram o silencio que reinava nas ruas estreitas da velha São Cristóvão, em Sergipe.

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Universidade Federal de Sergipe
Comunicação Social/Jornalismo
Trabalho Acadêmico da disciplina Produção e Recepção de Texto I
Profª. Mariana Salerno

domingo, 4 de abril de 2010

A força que nunca seca

Para quem segue o percurso do rio, ela está lá. Lá no fim do cais. Sua imponência lembra um farol que não precisa de luz, ao contrário, à noite quando as luzes ao seu redor estão apagadas, torna-se o cantinho preferido dos namorados.

Suas raízes expostas demonstram a força de sua história. Foram tantos os outonos que novas folhas floresceram ocupando o lugar daquelas levadas pelo vento. No passado, a praia preferida pelos banhistas do nosso Rio Guamá era à sua frente. Vários foram seus vizinhos, bares e restaurantes que não estão mais por lá. Pontes, tantas pontes de madeira que por lá estiveram fixando uma moradia transitória dependente da força das águas. Hoje, o concreto substituiu a madeira e aos seus olhos brotou uma construção símbolo dos novos tempos. O passado, representado pelas suas raízes e galhos envelhecidos, convive frente a frente com o presente, representado pelo concreto.

Sentar no banco ao seu redor ou na mureta do cais de arrima à sua frente, além de sentir uma brisa deliciosa, podemos assistir de camarote o salto da meninada que curte a adrenalina de pular da ponte. Podemos avistar o movimento dos banhistas nas pedras da antiga cachoeira. Percebemos o passar dos carros, motocicletas e bicicletas que em segundos ou minutos, ao atravessar a ponte estão em outro município. Podemos ver o ônibus da Boa Esperança que, dependendo do sentido que vem, anuncia a chegada ou a partida à Capital.

A árvore robusta é mais que uma árvore. É mais que um ponto de referência. É um ponto de encontro. Degustar aquela cachaça com um grupo de amigos é um programa que sempre rola em seu quintal. Um quintal grande que, num passado recente, nas festas natalinas ganhava companhia da roda gigante, carrossel, autopista e outros jogos; muitas barracas, muita gente. No fim da tarde do dia 24 de dezembro, conseguir um espaço em sua varanda para ver a chegada de São Benedito é uma disputa. Lembro-me de vários brindes de fim de ano que fizemos à sua volta. Momentos que ficaram no passado, registrados na memória. Muitas coisas mudaram. Os parques de diversão já não ocupam mais seu quintal. Os brindes de fim de ano já não se fazem ao seu redor.

É a roda da história dando voltas. E a velha mangueira permanece lá como parte de um cenário envelhecido que se rejuvenesce ao som e ao ritmo das águas do Guamá e ao soar do sino da esplêndida igreja.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Pelourinho

Ruas estreitas
Pedra sabão
O passado
abraça o presente
A raça de ontem
mantém a riqueza de hoje

Casarões multicoloridos
Paredes multicoloridas
Tambores multicoloridos
Vestidos multicoloridos
Tererê multicoloridos
Cabelos, olhos, peles
Negros, negros, negras

Ladeira
No subir e descer
das cadeiras
Percussão
Marcação
Animação

Bares
Lojas
Livrarias
Cinema
Música
Teatros
Sorveterias
Museus
Igrejas
Cultura e Arte
Sagrado e Profano
Apartheid
Gritamos liberdade

Biblioteca Epifânio Dória: um descaso com a educação e a história sergipana

“Sem recursos, tento fazer aquilo que Epifânio fazia”, disse Pedrinho dos Santos, historiador e guardião do terceiro maior acervo de obras raras do país. A Biblioteca Pública Estadual Epifânio Dória possui mais de 100 mil obras raras, entre estas um livro de 1654 e uma bíblia de 1890. Porém, toda essa riqueza não é valorizada. No passado, a Biblioteca Estadual dispunha de um orçamento deliberado anualmente na Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe. Hoje, o seu vínculo orçamentário é com a Secretaria Estadual de Cultura que recebe menos de 1% do orçamento geral do Estado. “Temos que está mendigando. É um protocolo para conseguir uma estante”, disse o historiador.

O setor de obras raras é um dos que mais padece com a falta de dinheiro. Seu Pedrinho, como é carinhosamente chamado o historiador, é o único funcionário do setor. A sua pequena sala, por ele chamada de caixa de sapato, tem um ar condicionado que proporciona uma temperatura agradável, isso porque ele próprio apanhou o aparelho de ar no prédio central do Banco do Estado de Sergipe (Banese). Seu Pedrinho utiliza envelopes usados para conservar e restaurar os livros, pois nem papel é garantido para que seu trabalho seja realizado. Na sala dispõe de um computador moderno sobre um móvel amarelo brilhoso, uma impressora colorida, um aparelho telefônico novo, uma cadeira azul de rodinhas e uma cafeteira eletrônica. Em todos esses objetos pode-se ler PEDRINHO, pois o funcionário comprou todos com o seu próprio dinheiro e guarda as notas fiscais para comprovação.

Foi na ‘caixa de sapato’ que conversamos com Seu Pedrinho. Tomamos um saboroso café. Em meio à conversa folheamos livros antigos e podíamos ver no brilho de seus olhos o amor que tem pela sua profissão. Desde meado da década de 1990, dedica-se inteiramente à organização das obras raras da Biblioteca Estadual. Antes, trabalhava no Arquivo Público Estadual. “Vim para a Biblioteca Estadual em 1996 organizar o setor de obras raras e vou ficar até morrer. Não vou sair mais”, enfatizou Seu Pedrinho.

A Documentação Sergipana é outro setor de destaque da Biblioteca Estadual. Encontram-se 3.100 títulos de livros e 50 títulos de revistas em seu acervo. Em suas estantes podem-se consultar os livros da biblioteca pessoal do crítico literário Silvio Romero e do desembargador Gumercindo Bessa. Todas as obras deste setor são disponíveis somente para consulta.

A maioria do público da Biblioteca Estadual são estudantes em busca de materiais para seus trabalhos escolares. Os livros com os assuntos de todas as disciplinas escolares fazem parte do Acervo Geral Fausto Cardoso. São 7.190 títulos, disponíveis para consultas. Os livros para empréstimos estão no Acervo Circulante Armindo Guarará. Machado de Assis, Jorge Amado, Cecília Meireles e vários outros literatos brasileiros podem ser encontrados no Acervo Circundante. O empréstimo dos livros é concedido mediante o cadastramento. Para isso, solicita-se uma foto 3X4, comprovante de residência, carteira de identidade, um número de telefone fixo para contato e dois números fixos para referências. O cadastrado pode levar até dois livros por semana.

A cultura popular tem seu espaço garantido na Biblioteca Popular. A Sala de Cultura Manoel D’Almeida Neto é toda decorada com o artesanato sergipano. A literatura de cordel tem lugar de destaque. Seu Zezé de Boquim, um dos maiores cordelistas de Sergipe, é quem atende os visitantes. Vizinho à Sala de Cultura Popular, está localizada a Hemeroteca F.A. Carvalho Lima Júnior. Jornais antigos e atuais estão localizados neste acervo. A consulta é permitida e para manusear os jornais antigos utilizam-se luvas e máscaras. O mesmo procedimento é tomado no setor de obras raras e parte do acervo dos documentos sergipanos.

Livros didáticos, literatura infanto-juvenil, atlas e dicionários em braile estão à disposição dos portadores de necessidades especiais. Há também livros falados (áudio book). Segundo a estagiária Iara Gouveia, há um projeto para que as obras deste setor possam está disponível para empréstimos a partir deste ano. Atualmente, é permitida a leitura e a escuta dos áudios books na própria biblioteca.

Todo esse patrimônio cultural e educacional foi construído há mais de um século. A Biblioteca Estadual tem 161 anos. Foi criada pela Lei 233, de 16 de junho de 1848. Foi inaugurada no dia 2 de julho de 1851 e funcionava numa das salas do Convento São Francisco, na cidade de São Cristóvão, primeira capital sergipana. A Biblioteca Provincial de Sergipe, como era chamada há época, iniciou suas atividades com 415 livros, obras doadas pelo então presidente provincial, Amâncio João Pereira de Andrade.  Antiga biblioteca permaneceu no Convento até 1855. Com a mudança da Sede do Governo para a nova capital, Aracaju, teve livros e móveis guardados em salas da Assembléia Legislativa e das Secretarias de Governo até fins do século XIX. O governador José de Siqueira Menezes dotou a Biblioteca Estadual em um edifício próprio em 14 de julho de 1914, onde hoje funciona a Câmara de Vereadores. Permaneceu nesse prédio até 1936. No ano seguinte, foi transferida para o edifício onde hoje funciona o Arquivo Público de Sergipe. No dia 28 de outubro de 1974, no governo de Paulo Barreto foi inaugurado o atual prédio.

Epifânio Dória foi eleito o patrono da Biblioteca Estadual. Dirigiu-a entre 1914 a 1943. Foi um intelectual de permanente contato com fontes documentais, escreveu sobre variados temas da vida sergipana, reuniu preciosas coleções de documentos, livros, jornais e revistas. Enriqueceu o acervo da Biblioteca Estadual. Como homenagem, através do Decreto 2020, de 30 de dezembro de 1970, a Biblioteca Estadual passou a denominar-se Biblioteca Pública Estadual Epifânio Dória.

Infelizmente, o patrimônio histórico e educacional da Biblioteca Estadual não é valorizado. Estamos caminhando para a segunda década do século XXI e toda a catalogação dos títulos da Biblioteca Estadual é feita em fichas. Nada é informatizado. Seu Pedrinho está catalogando as obras raras em folhas de papel em sua prancheta. Há 20 anos o Governo do Estado não compra um livro novo para a Biblioteca Estadual, seu modesto Acervo Geral e Circulante é mantido com doações. Nos acervos e salas de leitura, ventiladores circulam no teto, o calor é um grande incomodo para quem precisa de um mínimo de conforto para trabalhar ou ler. Às 19h, todos os setores são fechados, pois não há funcionários suficientes para o atendimento, quem trouxe o livro de casa pode ficar lendo até as 20h quando encerra o expediente.

A Biblioteca Pública Estadual Epifânio Dória urge uma especial atenção.              

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Meu programa de TV favorito

Era uma quarta-feira, dia ensolarado, trânsito congestionado, um vai e vem de pessoas nas ruas. Em meio a esse agito, ainda a caminho do trabalho, recebi pelo celular uma mensagem do meu patrão. Estava convocando todos os gerentes setoriais para uma reunião às 20h. Fiquei mais chateado ainda, não bastava o caos no trânsito. Depois que li a mensagem, reclamei:

- Putz, logo hoje! Justo no horário do meu programa de TV favorito. Isso não poder ser verdade.

Deixei minha esposa no consultório médico e meus dois filhos na escola. Segui meu caminho, rumo à empresa. Logo que cheguei, fui notificado via oficio circular sobre a reunião de balanço das vendas no primeiro semestre.

Passei o resto do dia preparando relatório e buscando encontrar uma boa desculpa para não comparecer na reunião. Preferia ficar resfriado de uma hora para outra, só assim ficaria em casa assistindo “O milionário”. Desde adolescente, tenho por hábito assistir programas de TV que testam o conhecimento dos participantes. Fico em frente à TV tentando responder as perguntas como se fosse eu o interrogado. No mês passado, durante as férias escolares de meus filhos, eu e eminha esposa transformamos a sala da nossa casa no palco do programa “O milionário”. Com as cadeiras, organizamos o espaço destinado à platéia. Uma das paredes foi coberta por um grande papel cinza estampado com a logomarca do programa. A cor do papel realçou as letras vermelhas e a imagem da moeda dourada que substituía o último “o” da palavra milionário. A decoração ficou durante todo o mês das férias. Divertimos-nos muito, as crianças adoraram. Confesso que também adorei a brincadeira.

Todas as quartas-feiras, assisto o programa acompanhado de minha esposa e meus filhos. Reservo esse dia da semana para ficar mais perto deles, pois durante os outros dias chego tarde do trabalho. É um compromisso que gosto de cumprir, tanto que durante esse ano não tínhamos falhado em nenhuma quarta-feira. Mas eu estava com muita dúvida, sou gerente de um dos setores mais importante da empresa e deveria participar da reunião. É certo que a reunião não tinha uma platéia animada e entusiasmada, nem tão pouco seria em uma sala colorida, nosso relatório não eram apresentados em um painel eletrônico e o presidente da empresa não era sorridente como o apresentador do programa “O milionário”. Só emitiria um sorriso no final da reunião caso os balancetes apontassem um crescimento no lucro, valor que não seria dividido com a gente.

No final da tarde, quando eu estava fechando os últimos relatórios, minha esposa telefonou e pediu que eu levasse pizza para comermos na hora do programa. Confirmei que compraria. Não falei nada sobre a reunião. Conclui os relatórios e fui deixá-los na secretaria para que as cópias fossem reproduzidas para todos os membros da reunião. Fiquei sabendo que a reunião seria naquele dia porque o patrão viajaria a passeio com a sua família na sexta-feira. Foi então que decidi que não deixaria de cumprir meu compromisso com a minha família para garantir que o meu patrão honrasse o seu com a sua.

Voltei para minha sala, liguei para a pizzaria, encomendei duas pizzas tamanho família e fui para minha casa. Tomei um banho para relaxar, liguei a TV, sentei na minha poltrona. Minha esposa e meus filhos também vieram para sala, o nosso ritual de todas as quartas-feiras estava começando. O programa iniciou pontualmente, o auditório estava lotado como em todas as noites. Na primeira fila, estavam os familiares e amigos do participante, um jovem de 18 anos. Seu rosto um pouco assustado aparecia no telão enquanto o apresentador falava seu nome e a sua cidade de origem.

O confronto estava começando, ao centro, num pequeno balcão de vidro estavam cara a cara o desafiador e o desafiado. Eu inquieto esperava a primeira pergunta como se fosse o participante. Sofria com cada suspense feito pelo apresentador e a cada resposta emitida pelo jovem. Foi o programa mais emocionante que assisti. Pela primeira vez alguém faturou o prêmio de R$1 milhão. As barras de ouro que estavam em um painel de vidro agora pertenciam a um jovem de 18 anos. Com certeza sua vida não seria mais a mesma a partir daquela noite. Eu estava muito feliz pela sua vitória e por ter vivido mais esse momento ao lado das pessoas mais importantes da minha vida: minha esposa e meus filhos. Com certeza, eu tive um bom motivo para não ter ido à reunião.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

"Hoje tem espetáculo?"


O sol radiante daquelas manhãs abrilhantava a nossa festa. Era o momento da diversão, o instante em que o símbolo da alegria estava próximo ao seu público convidando a todos para o espetáculo. O palhaço perguntava:

- Hoje tem espetáculo?

Eu e outras dezenas de crianças que o seguia respondíamos uniformemente:

- Tem sim Senhor.

- Tem o globo da morte?

- Tem sim Senhor.

- Tem palhaço, equilibrista e o mágico?

- Tem sim Senhor.

Várias outras perguntas eram feitas. Todas respondidas com entusiasmo. O artista circense, em agradecimento a nossa animação, jogava para o ar cortesias e a rua que era o palco do desfile, por um instante, tornava-se o palco da disputa pelo precioso prêmio.

O sol não era incômodo. O palhaço continuava andando com suas pernas de pau, muitas outras crianças seguiam seus passos, as vozes aumentavam e a disputa pela cortesia também. Conseguir a cortesia nunca foi o fim por si mesmo. Ao contrário, o bom da festa pelas ruas era nossos risos, nossa euforia.

Encontrávamos forças para seguir caminhando, cantando e gritando com o palhaço. Nós participávamos da animação como verdadeiros protagonistas e não como meros espectadores. Havia uma ligação necessária entre nós e o palhaço. Precisamos dele para fazer de nossas manhãs uma festa pelas ruas da cidade e, ele precisava da nossa participação para o sucesso do circo. Somente hoje percebemos esse jogo de dependência, no momento tudo era uma grande alegria.

- Vou ali e volto já. Dizia o palhaço.

- Vou chupar maracujá. Respondíamos.

- Vou ali e volto cedo.

- Vou chupar limão azedo.

E assim percorríamos as ruas, asfaltadas ou não. Era uma manhã de festa ao ar livre. Um palhaço com suas pernas de pau seguido por dezenas de crianças com suas pernas de osso. Parafraseando Paulinho da Viola, “foi um circo que passou em minha vida”.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Somos sarará crioulo


Quem sou eu? Vira e mexe faço essa pergunta a mim mesmo. Sou um ser social? Sou um objeto? Sou um assessório? Sei lá. Sou tantas coisas ao mesmo tempo. Flerto por vários mundos, mas, particularmente, adoro passear pelo mundo da música.

O reggae de Bob Marley não seria o mesmo e ele não poderia ser chamado o rei dos rastafáris. Os meninos da Tropicália exibiam suas cabeleiras e as movimentavam ao som do novo ritmo musical. “A cabeleira, cabeluda, descabelada” passou a ser símbolo de uma geração alternativa. Para outros, a cabeleira era suspeita e a pergunta ficava no ar, “olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é?”. Não sei e também não me interessa.

Nos dias de hoje, enquanto muitos procuram me alisar, me esticar, me cauterizar, me fritar na chapa, Vanessa da Mata com sua voz divina e maravilhosa, faz de mim o seu visual. Com o amarrado que só ela faz, fico mais volumoso. Chamo mais atenção quando ela coloca aquela flor vermelha e seu perfume de sim. Gosto da Vanessa porque ela me aceita da forma que cresci em seu couro cabeludo. Inclusive, com a música, brinca com aquelas, como a sua própria tia, que utilizam o “Joãozinho” ou o famoso bob para alisar as pontas.

Luis Caldas fez sucesso com seu “fricote” por causa de mim. Quem não se lembra da “nega do cabelo duro que não gosta de pentear, quando passa na boca do tubo o negão começa a gritar, pega ela aí”. Pois é, recentemente, as Três Meninas do Brasil chegaram a perguntar musicalmente para nega: “Qual o pente que te penteia? Qual o pente que te penteia, ô nega?”. Arnaldo Antunes entrou na conversa e foi logo rasgando o verbo “quem disse que cabelo não gosta de pente”. Sandra de Sá mandou de lá, em defesa da nega, “a verdade é que todo brasileiro tem cabelo duro, sarará crioulo”.

Na música também sou sentimento. Despertei saudades de um amor vivido, um fio de cabelo comprido que esteve grudando em suores de amor, era a única lembrança deixada no paletó. Saudades, muitas saudades daquela índia, de “seus cabelos negros, nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar”.

Viu? De boca em boca, de música em música, vou ganhando novos significados, novos conceitos. Comprido, cortado, tingido, trançado, escovado, aparado, descolorido, feio ou bonito, seco ou molhado. Múltiplas identidades reveladas ao som da música. Uma única certeza, independente da forma, do tipo, do estilo, sou cabelo. Espero continuar com todo esse sucesso, pois uma coisa posso dizer, não “são dos carecas que elas gostam mais”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O milionário

“Boa noite. Está começando o programa O Milionário”, anunciou o apresentador. Minhas pernas começaram a tremer como dois pés de bambu durante uma ventania. Disfarcei o nervosismo com um sorriso sereno. Aos poucos, fui ficando calmo. Minha atenção foi direcionada ao apresentador que caminhava em direção ao seu assistente de palco. Este tinha em suas mãos os envelopes com as perguntas que seriam feitas no programa.

Com envelope vermelho em sua mão direita, Marco Aurélio posicionou-se a minha frente. Um pequeno adesivo com a logomarca do programa fechava o invólucro. Ele retirou o aderente e pegou a ficha onde estava escrita a primeira pergunta da noite. Olhei em seus olhos buscando demonstrar confiança e esconder meu nervosismo. Olhando para mim, leu o quesito. Respondi e fechei os olhos. Os aplausos da platéia informaram meu acerto. Fiquei feliz.

Passei a mão sobre o bolso da minha camisa para sentir meu amuleto da sorte, um trevo de ferro, presente de um primo meu, carrego comigo desde os meus 15 anos. Enquanto isso, Marco Aurélio recebia de Felipe o envelope azul. Como eu tinha avançado para a segunda pergunta, o novo envelope era maior que o primeiro e estava fechado com dois adesivos, referindo-se a ordem das perguntas. Marco Aurélio leu a segunda pergunta, anunciou o tempo estimado para a resposta – 15 segundos – e acionou o cronômetro. Retirei o trevo do bolso e segurei entre minhas mãos. Respondi e resolvi encarar o telão. Em poucos segundos foi informado meu avanço a pergunta seguinte. Sorri e sussurrei:

- Agora só restam três envelopes.

Sabia que as perguntas seriam mais difíceis a partir daí.Minhas mãos começaram a ensopar de suor. Peguei um lenço no bolso da minha calça e as enxuguei. Nesse momento, Marco Aurélio fez o anúncio dos patrocinadores do programa e frisou que nenhum participante tinha conseguido passar da terceira pergunta. Com isso, o apresentador me deixava mais nervoso e apimentava o programa para manter os telespectadores frente à TV. As pessoas que estavam assistindo queriam ver se o jovem de 18 anos passaria pela pergunta do envelope verde. A cor da sobrecarta representa a esperança. Acertar a resposta garantiria a mim R$500 mil, isto é, a metade do valor total pago como prêmio pelo programa. A resposta errada era o passaporte de volta para casa com o bolso vazio. Marco Aurélio leu a pergunta pausadamente. Respondi sem pressa. Por alguns segundos ficou aquele clima de suspense, a produção do programa colocou uma musica ambiente. O suspense era preciso, o apresentar sempre frisava que nenhum participante tinha passado dessa fase do programa. Ele perguntou se eu queria desistir e respondi que não. Passado o clima de suspense, o telão anunciava minha façanha em acertar a pergunta do envelope da cor da esperança. Não me contive, gritei de felicidade e fui até a platéia abraçar meu primo, aquele que me presenteou o trevo da sorte.

Voltei ao palco do programa. Fui parabenizado por Marco Aurélio. Eu estava muito feliz com o acerto e Marco Aurélio pelo índice da audiência que subiu segundo informes de seu assistente de palco. Minhas pernas voltaram a tremer como no início do programa. As mãos não paravam de suar. Mesmo nervoso, respondi sim a Marco Aurélio quando ele perguntou se podíamos seguir com o programa. Ele abriu o envelope cinza. O papel brilhoso ressaltava os quatros pequenos adesivos que lacravam o invólucro. Precisava subir esse penúltimo degrau da escada que levava ao prêmio maior. Não conseguia me acalmar, fiquei embaraçado com a pergunta feita pelo apresentador, pedi que repetisse. Ouvi atentamente, gaguejei um pouco, mas consegui responder. Outra vez, preferi não olhar para o telão e fixei meus olhos na platéia. Quando todos se levantaram e aplaudiram, meu coração disparou, começou a bater rapidamente. Os aplausos era a confirmação, tinha chegado à fase final do programa.

“Isso é inédito”, exclamou Marco Aurélio. A façanha fez com que o apresentador anunciasse o intervalo comercial. Eu aproveitei e fui outra vez a platéia receber um abraço de meu primo. Tomei um pouco de água, enxuguei o suor e mostrei a ele o trevo da sorte. Recebi um abraço apertado do assistente de palco e um aperto de mão do apresentador. O programa voltou ao ar. Frente a frente com Marco Aurélio, observei em sua mão esquerda o envelope da cor das barras de ouro que seria entregue a mim, caso acertasse a resposta. Foi explicado que a pergunta nãos seria de múltipla escolha, teria que responder no tempo máximo de dez segundos. Todos na platéia ficaram em pé. O nervosismo de antes duplicou. Minhas pernas não paravam de tremer. Marco Aurélio abriu o envelope, explicou novamente a regra para resposta e, depois do suspense, fez a pergunta. Respondi com os olhos fechados. Ouvi o grito da platéia e sentir papel picado caindo sobre minha cabeça. Quando abri meus olhos, vi meu primo caminhando em minha direção, abraçou-me fortemente exclamando “você é milionário”.

domingo, 25 de outubro de 2009

Fim de tarde


Levantei, olhei pela última vez aquele espetáculo que chegava ao fim. Pus meus pés em meus chinelos brancos e caminhei ao encontro com as águas. A areia que cobria meus pés foi levada e embalada pelas ondas, que assim como eu, despediam-se de mais um dia de verão.

O vento forte que mais cedo espalhava as areias, agora era ameno e um pouco frio. Os pingos coloridos que subiam e desciam as ondas agora eram poucos. Os mais firmes continuavam a aventura do equilíbrio sobre as águas em movimento. Para estes, a ida do sol para o oriente não significava o fim da aventura, mas para outros sim, para a maioria.

Os corpos que mais cedo desfilavam com poucas roupas passaram a ser cobertos com panos maiores. Biquínis foram cobertos por camisolas e as sungas por bermudas e camisetas. O chinelo trocara de posição com a luva, a areia fria permitia aos pés dispensa-los. Os óculos escuros viraram enfeites na cabeça, sem o sol perderam sua função e, logo, ganhou outra. Isto é a criatividade humana.

Os boleiros tentaram aproveitar os últimos raios da claridade na busca do gol. A partida cronometrada pelo relógio é interrompida quando o rei dos astros dá o apito final. Ver a redonda no escuro é complicado.

Quando sol ainda emitia seus fortes raios e minha pele pedia protetor solar, eu entrei na água, mergulhei por alguns minutos, brinquei com as ondas, as desafiei e fui arrastado por elas. Ficamos nesse estica e puxa por um bom tempo. Nada mais ousado que desafiar o infinito. Infelizes aqueles que nunca tentaram, jamais poderão descobrir até onde vai à força humana.

Caminhando pela areia, deixei minhas marcas que em poucos instantes eram desfeitas pela maré. Ao longe avistei um pedaço de madeira. Restos de cordas e ferros atracados permitiam concluir que deveria ser de uma velha embarcação. Sentei e pude ver por trás dos coqueiros o sol preparando-se para viajar para o outro lado da terra. As palhas dos coqueiros balançavam em um ritmo sincronizado com o movimento do sol. As palhas refletiam o brilho dos raios. Era uma despedida, sem tristeza e lágrimas, ao contrário, era um show único onde às ondas do mar emitiam o som e as palhas dos coqueiros ditavam o ritmo da dança. Um conjunto perfeito, o encontro dos três elementos – mar, vento e sol – resultou nesse lindo fim de tarde.

“Cada dia é um dia roubado da morte” (Clarice Lispector)