terça-feira, 4 de novembro de 2014

Estação Recife



O sol reinava naquela manhã de sábado na capital pernambucana. Primeiro dia do mês de novembro. O relógio marcava 10h15 quando entrei no metrô, razoavelmente cheio. Seguia em direção à estação Recife. O que me chamou atenção foi o festival de venda ambulante dentro da locomotiva. Em 20 minutos contei 10 vendedores e um pedinte, solicitando ajuda para comprar uma passagem para Caruaru.

Uma senhora aparentando quase 60 anos de idade, de pele branca e pálida, usando uma saia branca com flores vermelhas na borda, de fios puídos, com uma blusa que um dia foi azul, vendia salgadinhos e frisava com sua voz fina que a ‘Torcida’ era um real. Com a mão esquerda segurava o saco de plástico transparente com os pacotes de salgados e com a inversa tentava se segurar para não cair por cima dos passageiros, devido o movimento do trem.

Logo atrás da anciã, um homem negro, com cavanhaque estilizado, vestindo um short vermelho e camisa de gola preta, arrastava uma caixa térmica azul vendendo refrigerante e água. R$2 e R$1 cada item, respectivamente.

Um jovem negro, magro e alto vendia pipocas - doces e salgados – por R$1. Sua juventude e a leveza da sua mercadoria permitia que andasse tranquilo pelo do metrô. Sua passagem pelo vagão que estava sentado foi rápida, como a concorrência era forte não podia dar-se o luxo de perder muito tempo. Oferecia a iguaria, dizia o preço e o sabor da pipoca.

E no meio da venda das iguarias comestíveis, surge um rapaz branco, usando short e camisa do Santa Cruz, carregava duas tatuagens em cada braço com o símbolo do seu time do coração, oferecendo termômetro digital, andando de um lado para outro do vagão gritava:

– Termômetro digital. Você testa na hora. Não precisa sacudir para saber a temperatura, apita anunciando que você já pode verificar a temperatura do seu corpo. Nas farmácias o preço deste produto custa em média 15 reais. Sabe por quanto você compra aqui comigo? Pra você passageiro do metrô, eu vendo por apenas 5 reais e você faz o teste agora, no momento da compra.

Água, refrigerantes, salgadinhos variados, pipocas, bombons e jujubas. Tudo se vende no metrô de Recife, assim a viagem fica mais leve e não percebemos o passar do tempo. É tanto anuncio de venda que precisamos ficar atentos aos avisos emitidos pelos condutores do trem. Se vacilar, perde a estação de destino.

Fiz questão de ser o último passageiro a descer do metrô. Vi a locomotiva em sua extensão completa. Eu estava no primeiro vagão. Observei a quantidade de lixo jogado no chão do trem: garrafas de água e refrigerante, canudinhos de plásticos, sacos de salgadinhos e pipocas. Ao mesmo tempo, reparei que não tem uma lixeira dentro do metrô. Questionei ao funcionário da companhia sobre a falta de lixeira, a resposta que obtive é que a venda dentro dos vagões não é permitida por lei.

Leis podem ser mudadas. O mais interessante seria a companhia metroviária realizar uma campanha educativa com os passageiros, colocar lixeira dentro dos vagões e permitir o que já permitido pela necessidade de sobrevivência: a venda ambulante dentro do metrô. Tenho certeza que o metrô do Recife continuará agitado, bonito e alegre, por um único motivo, permanecerá tendo a cara de quem o utiliza todos os dias.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Ourém 252 anos: como é grande o meu amor por você

Era domingo, 8 de março de 1998. Acordei às 5h, ainda estava escuro. Tomei banho. Saboreei o café feito com carinho pela minha mãe, dei um forte abraço nela e em meu pai. Peguei a bolsa. Caminhei em direção ao terminal rodoviário. Aquele jovem, que no dia anterior completara 18 anos, estava indo embora para Belém continuar seus estudos. Deixei família e amigos e fui descobrir um novo mundo.

Hoje, 16 anos depois, moro em Aracaju (Sergipe), no nordeste brasileiro, longe de Ourém, interior localizado no nordeste paraense, há mais de 1.500km. Contudo, não tem distância que diminua o amor que eu sinto pelo meu lugar, pela minha aldeia, pelo meu povo.

Dias atrás, sentado na areia da praia, curtindo a brisa do mar e ouvindo o barulho das ondas, me peguei correndo na Travessa Tembés, quando ainda não era asfaltada. A piçarra com suas pedras não impedia que fizéssemos da rua nosso campo de futebol, de taco e de queimada. “Não valeu o gol. Foi falta”, “Não derrubou a lata. Tem que derrubar”, “Você morreu. Passe para o outro lado”, escutei os gritos que dávamos durante nossas brincadeiras nas tardes ensolaradas ou chuvosas do Pará.

Olhando para a imensidão do Oceano Atlântico me peguei nadando nas águas correntes do estreito Rio Guamá. Senti-me caindo da boia no meio do rio, pulando do cais ou da ponte, correndo pelas pedras da cachoeira, andando de canoa, comendo charque assado com farinha, tomando cachaça 51 na escadinha e tirando o gosto com manga verde que derrubávamos da velha mangueira que reinava imponente na beira do arrimo.

Um casal de adolescente caminhava na areia da praia, vestiam o uniforme escolar. A moça de pele bronzeada soltou seu enorme cabelo preto para balançar no ritmo do vento que arrastava as ondas. Olhando pra eles me encontrei na Escolinha do Atlântico, atual Rubens Guimarães Júnior. Foi lá que eu estudei da pré-escola à 3ª série do ensino fundamental. Foi lá que eu descobri o mundo da escrita, do cálculo e da leitura. Meus primeiros passos no mundo do saber acadêmico foram na escola que abrigava o Complexo Esportivo da cidade, com o estádio de futebol que foi palco de tantas alegrias proporcionadas nos clássicos entre Luiz de Moura e Liderança. Em seguida lembrei da Escola Padre Antônio Vieira, onde estudei a 4ª série do ensino fundamental, com seus corredores, muitas salas de aulas, uma campainha de barulho forte e uma merenda escolar impecável preparada pela minha Mãe e suas amigas-comadres Dona Direne, Dona Júlia, Dona Guiomar, Dona Joaquina e Dona Maria do Aurélio. Aos poucos, cheguei à Escola Padre Ângelo Moretti, entrando pelo portão que me dava acesso à 5ª série do ensino fundamental até o 3º ano do ensino médio. Era um colégio enorme aos meus olhos e atravessar aquele portão era símbolo de crescimento, estava deixando de ser criança. Deparei-me com um lindo bosque, cheio de animais, mesas e bancos de madeira. Nessa escola avancei pelo mundo do saber, descobri a complexidade dos números e letras aprendidas nas séries inicias, viajei pelo mundo da ciência, descobri a história do homem enquanto ser social e sua localização geográfica. Tudo isso conduzido por professores fabulosos.

Levantei da areia e resolvi caminhar pelo calçadão da orla de Aracaju. Cheguei ao ‘Mundo da Criança’, uma área cheia de brinquedos, espaço onde a meninada se diverte. Lembrei do nosso modesto parque, localizado entre a Igreja Matriz e a Praça Magalhães Barata. Era nosso palco de diversão. Todos os sábados, após a Missa das Crianças, era pra lá que corríamos. Depois de pular, girar, gritar, correr, íamos comprar guloseimas no Tio Dedê. O parque deu lugar a um prédio da Ação Social, hoje quem faz estripulias por lá são os idosos, e o Tio Dedê está vendendo bombons e caramelos para os anjos.

Andei em direção à minha casa. Continuei com o pensamento em Ourém, relembrando os momentos que marcaram a minha vida, ajudaram a formatar minha personalidade, permitiram ser quem eu sou. Posso percorrer por vários lugares, mas percorro consciente de que tenho minhas raízes fixadas em um lugar pequeno e aconchegante lá no interior do Pará. É de lá que eu venho. É de lá que eu sou.

Nesses 252 anos de história tenho apenas uma coisa a dizer: Ourém, como é grande o meu amor por você!


Aracaju (SE), 29 de maio de 2014. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O bêbado na praia de Deus

O sábado estava ensolarado, já anunciando a chegada do verão. O forte calor pedia uma água de coco bem gelada. Assim fiz, caminhei até a orla, sentei em um quiosque, pedi um coco e fiquei observando o movimento na praia. Passava das 14h, poucas pessoas transitavam pelo calçadão. Um senhor de pele clara, estatura baixa, usando uma bermuda jeans desgastada e uma blusa que um dia tinha sido branca chegou oferecendo picolé caseiro. Afirmava com todas as letras que era uma delícia, anunciou uma lista de sabores e concluiu enfatizando o preço, “apenas R$1”.

Continuei tomando minha água de coco, olhando para a praia. O dono do quiosque tomou coragem e pediu um picolé de graviola. “Quero ver se é bom mesmo”. O sorveteiro revidou, “se não for bom, você não paga”. O vendedor de coco chupou o picolé como criança, se lambuzou todo, segurava o palito com a mão direita e limpava o queixo lambuzado com a outra mão. O sorveteiro louco para receber o seu dinheiro perguntava insistentemente, “e aí, gostou?”. O tio do quiosque fingiu que não ouviu e seguiu enfiando o picolé na boca desdentada.

Assim que terminou de chupar o picolé e jogar o palito no chão do quiosque, o vendedor de coco olhou para o sorveteiro e disse, “você deve ganhar muito dinheiro, hein”. Entendi que isso era a confirmação de que o picolé era saboroso. O sorveteiro para revelar sua modéstia respondeu, “que nada, quem deve ganhar bem é você com esse quiosque”. A partir daí, o tio do quiosque iniciou uma longa ladainha reclamando do dinheiro que paga pelo aluguel do estabelecimento comercial, R$1.200, da taxa de água e energia. Com cara de enfezado disse que fica por mês com algo em torno de R$1.500. “Isso não dá pra nada”, reclamou. O sorveteiro concordou, “é verdade, é pouco mesmo”.

O tio do quiosque colocou a mão dentro de uma lata de alumínio, pegou uma moeda de R$1 e entregou ao sorveteiro. Depois de agradecer, verificou se a tampa do carrinho estava travada e seguiu seu caminho. O tio do quiosque tentou puxar conversa comigo, reclamando novamente do valor do aluguel que paga ao dono do quiosque, acrescentando a informação de que o proprietário é dono de mais três quiosques na orla. Eu disse que uns têm muito e outros não têm nada, mas quando ia aprofundar esse debate de classes com o tio, fomos interrompidos por duas moças e duas crianças. Estavam na praia e queriam uma chuveirada para tirar a areia do corpo. O tio tem um chuveiro, ligado à uma bomba, que jorra uma água fria e potente. Essa delicia de frescor custa R$1, o minuto.

O tio foi atendê-los, recebeu o dinheiro e organizou a ordem dos banhos. Voltou para dentro do quiosque, ordenou que a primeira pessoa se dirigisse ao chuveiro, acionou uma tomada e água caiu fria e forte. As pessoas se assustam com o volume da água e com a frieza, fazendo com que dê um salto e um gemido, seguido de uma risada. Foi assim como todas as pessoas que passaram por debaixo daquele chuveiro durante o tempo que fiquei sentado em uma cadeira branca de plástico, com as pernas esticadas sobre outra cadeira do mesmo modelo, da mesma cor.

Quando a última moça estava concluindo seu banho, apareceu um homem vestindo apenas com um short preto, com uma pequena bolsa pendurada em suas costas e estava de porre, baforando cachaça, tropeçando em seus próprios passos. “Eu quero tomar banho”, gritou o bêbado. O tio do quiosque logo avisou, “paga R$1”. O porre retrucou, “eu pago, pago qualquer preço”. O tio anunciou, “deixe a moça terminar a vez dela”. O bêbado veio em minha direção, jogou sua bolsa próximo a cadeira que eu estava sentado e voltou em direção ao chuveiro. A moça concluiu o banho e o bêbado se deliciou embaixo do chuveiro como se estivesse encontrado uma fonte mágica, quando ele estava no auge da degustação, o tio desligou a bomba. O bêbado veio, pegou sua bolsa e colocou nas costas. Ia embora como se não tivesse que pagar o R$1, que antes afirmara que pagaria. Aliás, afirmara que pagaria qualquer preço.

O tio gritou de dentro do quiosque, “tem que pagar o R$1”. O embriagado respondeu, “não pago”. O tio saiu do quiosque, começou a bravejar dizendo que teria que pagar. Ficou a discussão paga X não pago. O tio do quiosque segurou o bêbado pelo braço, que sob o efeito do álcool perguntava, “vai me bater, vai me bater”. O tio reduziu sua fúria e mandou o bêbado ir embora do quiosque. Ao caminhar três passos, o bêbado gritou, “a praia é Deus”. Já de dentro do quiosque, o tio gritou mais alto, “mas a bomba é minha”.

Eu pedi mais um coco. Depois solicitei que o tio preparasse uma garrafa com um litro d’água. Paguei minha conta que custou R$12, agradeci e desejei boa tarde. O tio respondeu ao agradecimento e na réplica eu disse, “fique em paz na praia de Deus”. Coloquei meu óculos escuro e fui pra casa.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A outra metade

Assim que encostei meus lábios nos seus, frases desconexas surgiram em minha mente. Achei necessário registrá-las, buscar uma sintonia, um nexo. O suporte era o menos importante, podia ser escrita à mão em um pedaço de papel, digitar no iPad ou datilografar na minha velha máquina Remington Ipanema.

Com o seu beijo, a brisa que me igualava ao mar desapareceu dando lugar a uma forte tempestade. A calmaria foi substituída por ondas gigantes, arrastando tudo que me tranquilizava. Agora me pego datilografando essas linhas, caçando palavras, buscando explicações.

A única resposta que encontrei me levou apenas à metade do caminho. Resta-me encontrar a outra metade.

Aracaju/SE
20.08.2013

Vento dançante

É inverno, só resta um pouco de sol no céu, mais uma tarde chega ao fim. Sento na cadeira de balanço, em frente a minha casa, esperando a noite chegar. Monto guarda na minha porta para sentir a brisa que bate anunciando a vinda de um vento mais forte, que vem dançando pela rua.

Pernilongo

Ao tentar escrever essas poucas palavras, sou azucrinado por um pernilongo que insiste zunir em meus ouvidos. Pergunto:

- Por que Noé colocou um casal de pernilongo na Arca?

sábado, 3 de agosto de 2013

Nas ruas do Pelourinho

Cresci correndo nas ruas de pedras do Pelourinho. Subia e descia ladeira sorrindo, catando, às vezes, reclamando. Quando ia para a escola, com a energia de menino, as ladeiras não eram obstáculos. Eram deslizes. Bastava mainha mandar ir a taberna do Seu Zé, logo reclamava:

- Subir a ladeira com a sacola é ruim.

Não tinha chiado certo, mãe mirava seus olhos arregalados, eu virava as costas e descia ladeira abaixo. A subida era um verdadeiro sacrifício. Quanto mais andava parecia que a moléstia da ladeira crescia ainda mais. Às vezes, ficava sentado na calçada de um casarão azul, nº 54. Ficava alguns minutos ali, buscando coragem para subir a ladeira, pois força eu tinha, contudo, a preguiça me dominava.

Morávamos na Rua Três de Maio com a Rua da Oração. A Praça da Sé era o palco principal de nossas estripulias. Binho era meu amigo, parceiro e irmão. Conhecíamos o Pelourinho na palma da nossa mão. Cada rua, cada ladeira, cada beco. Andávamos por todas partes, sabíamos os caminhos mais curtos para ir a qualquer lugar. A geografia era nossa ciência, sem mesmo entendê-la muito bem na escola.

Painho era carpinteiro. Francisco era seu nome. Chico da Carpintaria seu apelido. Um homem tranquilo, de poucas palavras. Saia de casa logo cedo e voltava quando sol estava se pondo. Trabalhava na carpintaria da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Todos os móveis da igreja era meu pai que fazia. Lembro que falava com admiração para Binho:

- Esse banco que estamos sentado foi meu pai que fez.

Um simples banco preto de madeira era para mim uma grande obra. O fato de ter sido feito pelo meu pai era valoroso demais para mim. Achava aquilo magnifico. O meu pai construindo obras para a casa de Deus.

Mainha era uma senhora bastante católica. Nas horas vagas contribuía com afazeres na igreja. Varria o chão, limpava as imagens dos santos, deixava brilhando os bancos de madeira feitos pelo seu esposo. Casou com meu pai nesta igreja e sempre dizia que a união tinha recebido a benção do Padre Luís. Famoso sacerdote que tinha ido embora para Ilhéus e deixara saudade a toda comunidade.

Eu, desde cedo não gostava da igreja. Assim como todos os meninos da minha época erámos forçados a comparecer à missa. O melhor momento era quando o padre dizia:

- Vão em paz, que o senhor nos acompanhe sempre!

Não respondíamos nem amém. Era uma só carreira da igreja à Praça da Sé. No fim de tarde dos sábados, a praça ficava lotado de meninos e meninas serelepes como eu e Binho. Rapazes e moças, já na adolescência, ficavam namorando nos bancos de ferro. A gente queria saber era de correr, inventar brincadeiras e tomar sorvete de tapioca.

Assim vivemos toda nossa infância. Escola, igreja, praças, ruas, ladeiras. Crescemos. A Praça da Sé deixou de ser nosso ponto de encontro. Conhecemos a bebida, o cigarro, as mulheres. Passei no vestibular de arquitetura. Binho passou em um concurso público estadual e não quis entrar na universidade. Seguimos descobrindo o Pelourinho da mesma forma quando crianças. Agora, os bares, os botecos e os bregas delineavam a nossa geografia.

A Ladeira da Montanha e a Ladeira da Conceição da Praia eram nossas ruas preferidas. Descobrimos os casarões coloridos e as mulheres que lá se abrigavam. Dolores fazia de tudo comigo na cama. Regina ensinou os prazeres à Binho. Foram quase três anos subindo e descendo as duas ladeiras. Eu gastava todo o dinheiro que conseguia com estágio que arranjei em uma empresa de engenharia. Adorava presentear Dolores. Pulseiras, cordões, brincos. Assim como o candomblé presenteia seus orixás, presenteava Dolores, a minha rainha.

Binho ganhava mais dinheiro do que eu, mas não tinha todo esse romantismo com Regina. Gastava todo o seu dinheiro no bar do bordel e no jogo de cartas. Madame Rosana, dona do casarão “Flor da Bahia”, o mimava todo. Sempre interessada no dinheiro que ele ia gastar em seu bordel. Chegou a apostar no jogo até um relógio de ouro que ganhara de um tio de presente.

Quando eu ia completar 22 anos meus pais morreram em um acidente de carro. Estavam indo para um evento da igreja em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo. Lembro até hoje o rosto pálido e trêmulo do padre ao me informar o ocorrido. Fiquei sem chão. Não sabia o que fazer. Fiquei uns dois meses recolhido em casa. O silêncio da Rua Três de Maio era meu conforto. Não queria sair, não queria ver ninguém. Não fui para a universidade, perdi o estágio. Tinha medo de ir à rua e ouvir o sino da igreja. Para mim, mainha tinha ido organizar o templo de Deus e painho estava lá cuidando dos móveis, consertando bancos e mesas, construindo novos armários. Porém, eles não voltavam. Até que um dia percebi que eles tinham partido de vez.

Sai de casa rumo à Ladeira da Conceição da Praia. Fui em busca do colo de Dolores, dos seus braços, da sua cama, do seu corpo. Madame Rosana informou que a minha rainha tinha mudado de bordel. Perguntou pelo meu amigo de infância e disse que ele tinha deixado uma dívida no bar. Eu não sabia de Binho. Durante esses dois meses não abri a porta de casa para ninguém, nem para ele, nem para o padre.

Segui em direção à Ladeira da Montanha. Na frente de um casarão reconheci Matilde, prostituta amiga de Dolores.  Informou que minha rainha estava na área, mas não sabia informar o certo em qual casarão. Sentei na calçada, como no tempo de menino quando subia a ladeira com a sacola cheia de mercadorias do mercadinho do Seu Zé. Agora não pedia coragem para seguir adiante. Pedia força e sorte. Precisava encontrar Dolores. Entrei em um casarão azul, com duas grande janelas abertas, decoradas com cortinas vermelhas, com vista à Baia de Todos os Santos. No som rolava aquele brega rasgado, que falava do fim de um relacionamento, o homem apaixonado que mesmo corneado queria a amada de volta. Alguns casais dançavam no salão. As mesas quase todas ocupadas. No bar, uma loira alta servia as bebidas. Caminhando em direção ao balcão, vejo Dolores sentada em uma mesa acompanhada de outra mulher. Ela me olhou. Vi um brilho nos seus olhos. Sei que ela não viu nenhum brilho nos meus. Enxergou em sua frente um homem barbudo, cabelo despenteado, dominado pela solidão.

Dolores veio ao me encontro. Não questionou meu sumiço, nem minha aparência. Me deu um forte abraço como se soubesse que precisa de seu amparo. Beijei seus lábios carnudos lambuzando meu rosto com o seu batom vermelho. Dormimos juntos no bordel naquele casarão pela última vez. Até hoje, Dolores mora comigo na Rua Três de Maio.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Desassossego


Quando Fernando Pessoa estava escrevendo as pequenas prosas para o Livro do Desassossego não estava buscando falar sobre si, sobre o que ele era. Estava tentando decifrar o que ele não foi.

Falar o que o somos e o que vivemos é muito mais fácil. Basta apenas exercitar a mente lembrando o ocorrido, voltando ao passado. Falar sobre o que não fomos e queríamos ser é mais difícil. Exige criatividade. É preciso inventar o não ocorrido. Construir seqüências de fatos não executados. Criar cenas não realizadas, apenas desejadas.

Escrever aquilo que queríamos ser, pode passar a impressão de que é mais prazeroso. Afinal, vamos estar registrando em palavras os devaneios que circulam em nossa mente. Estaremos colocando no papel um projeto de vida que pensamos e desejamos. Depois de escrito, ao ler o desejado sentiremos uma dor, pois a vida que temos não é aquela que inventamos.

A realidade, por mais dura que seja, precisa ser encarada de frente. Não necessariamente precisamos descrevê-la de uma forma fria, seca, áspera.  A realidade também tem seu lado literário. O cotidiano pode ser expresso por um ponto de vista mais simples e ao mesmo tempo rico. A realidade, diferente do desejo e do sonho que permite a gente voar pelas nuvens, exige, unicamente, que estejamos com os pés no chão. Por uma questão de segurança, claro. Afinal, o chão é mais firme que o céu.

Sertão do Rio Grande do Norte
16.02.2013

Três despedidas


Há tempos não presenciava cenas de despedidas. A separação é dolorida, ao mesmo tempo que pode ser tempo de renovação. O pai e mãe de um jovem, que deve ter uns 17 anos de idade, choravam abraçando seu menino. Este também revelava um pouco de tristeza, porém, era uma tristeza com pintadas de alegria. Alegria pela viagem, por um momento novo que iniciava, por um mundo e estradas que descobriria.

Um jovem beijava sua namorada como se fosse o último encontro. As lágrimas desciam em seus rostos. O beijo prolongava-se na mesma proporção em que as gotas lacrimais caiam encharcando e deixando suculento o encontro labial dos apaixonados. Ela partiu. Ele ficou. Eles partiram. O próximo encontro, incerto. O mundo gira, as horas passam, a vida muda. Mas pelo carinho trocado posso afirmar que buscarão se reencontrar logo.

A mãe junta os dois filhos e o esposo, forma um pequeno circulo, ora. Consigo ouvir alguns sussurros onde a mãe pede proteção à Deus. Solicita que a viagem ocorra de forma tranquila e segura. Bem como, pede proteção ao esposo e ao filho mais velho que não viajariam. Depois, ela beija o rosto de cada um.

Três cenas de despedida. Três ausências diferentes. A dor da partida depende de quem  vai partir e do tempo que a ausência durará. Idas e vindas. Esse é o movimento constante da história humana. A vida não tem graça sem este movimento. Tempo, espaço, relatividade: trinca que decifra a dor e a felicidade da partida. Felicidade, sim. É em busca dela que nos movemos.

Fortaleza/CE
16.02.2013

Na companhia da lua


Poucas as vezes estive tão perto da lua. Muitas viagens em avião, realizei. Nunca a lua esteve ao meu lado como companhia. Os motivos, talvez, pela maioria das vezes não ter conseguido o assento à janela ou pelo simples fato da lua não ter dado o ar da graça.

Estou sentado na poltrona 28F, mas a minha poltrona é a 28E. De Fortaleza à Recife estive entre dois homens. Um loiro, alto, corpudo, não era brasileiro, falava inglês. O outro, um senhor, brasileiro, branco, baixo, cabelos grisalhos, lia uma material sobre filmagens. A poltrona 28F pertencia ao segundo.

Durante a escala no aeroporto do Recife, meus vizinhos de poltrona desceram. Fiquei com três assentos só pra mim. Poucas pessoas subiram ao avião. Nenhum desses poucos passageiros sentou ao meu lado. Assim, mudei para a poltrona 28F.

A decolagem foi autorizada, avião acelerado, céu à vista. Olho pela janela lá está. A lua brilha linda e esplendorosa. Fiquei observando seu brilho. Nunca tinha me sentido tão próximo à ela. Tive vontade de tocá-la. Mas que isso, tive vontade de sentar sobre ela de mãos dadas com o meu amor. Queria cantar as canções de roda que embalaram minha infância e fazer uma grande ciranda com meus irmãos e amigos.

Meus desejos não foram realizados e nem podiam. O avião tinha seu destino. A lua sentindo minhas vontades  resolveu me fazer companhia até à primeira capital do Brasil. Viajou ao lado da minha janela.


26/08/2012
No ar, voando entre Recife e Salvador

Vôo TAM-3891