sábado, 26 de junho de 2010

A cidade

O tempo controlado pelo semáforo. Habitantes sem referencias. Andar apressado. Olhar distante e frio. Tudo era diferente, estranho e novo para um menino que acabava de chegar do interior.

Sua visão de cidade quase homogênea, onde todos se conhecem por nome, onde fazem rodas de conversas na portas das casas, é bruscamente substituída por um ritmo onde as pessoas perdem a identificação com o lugar e com as outras pessoas.

O menino que gostava de andar descalço, sentir o chão frio de sua casa e terra fina do seu quintal, aquele que subia em arvores, assistia a dança das folhas ao embalo do vento, foi morar num edifício de 22 andares, no apartamento 804. Adeus quintal, arvores, pés descalços. Os costumes são outros. Dois elevadores transportam pessoas, as quais nem olham nos olhos das outras. Poucas falam bom dia/boa tarde/boa noite. Quando falam é mais por educação e não por intimidade. É o verdadeiro estar sozinho no meio da multidão. As relações são marcadas pela ausência da comunicação.

Aquele menino, ainda perdido no processo dinâmico da grande cidade, buscou manter traços de seu passado. Às vezes, ia descalço ao supermercado. Os olhares estranhos começavam no elevador, seguiam pela rua e terminavam no supermercado. Com seu jeito moleque, levava tudo na brincadeira.

Aos poucos, o guri da cabeça grande, começou a viajar no mundo numérico: casas, edifícios, andares, elevadores. Buscou inserir-se no novo ritmo, no novo tempo. Passou a acordar com o barulhinho do despertador – pi, pi, pi – o velho galo já não o acompanhava mais na madrugada com seu cantar. A vida passa a ser controlada pelo uso do relógio. Hora do banho, do café, tempo certo para chegar à parada do ônibus. Qualquer descontrole tudo fica fora do lugar. O tempo passa a controlar o cotidiano daquele menino que há alguns dias atrás tinha uma outra concepção de cotidiano e de tempo.

O estranhamento aos poucos foi deixando de ser obstáculo e passou a ser um desafio, algo ser superado, confrontado, descoberto, apreendido. Passou a cumprir o papel de mola mestra. Um impulso que levou o menino dos pés descalços a encontra-se com as grandes avenidas, movimento de carros e pessoas, o agito que a primeira vista parece um caos, mas que ao ser bem analisado revela uma sincronia nos movimentos.

O menino não se contentou com a visão estática da paisagem. Viajou para além das aparências e buscou compreender a máquina e suas componentes. Aos seus olhos, a metrópole tornou-se um espaço de revelação. Ganhou nova forma, nova dinâmica, novos conteúdos. Sua relação intrínseca com a cidade revelou seu amor por Belém (Pará) e pela geografia.

Papel em branco


Máquina de escrever
Papel em branco
Versos que não vem
Papel em branco


Caneta, tinta, tinteiro
Jogo de palavras
Um só fim
Nenhum começo
Papel em branco


Lápis
Outro lápis
Lápis a mais
Versos a menos
Papel em branco


Mente vazia
Coração palpitante
Voz presa na garganta
Sorriso amarrado nos lábios
Beijos algemados na boca
Papel em branco

sábado, 12 de junho de 2010

Do ponto de partida ao ponto de chegada

Gente, muita gente. 7h da manhã. Horário de pico. A placa informativa percurso centro aglutina um número maior de pessoas ao seu redor.

Rostos variados, brancos e negros. Velhos e novos. Todos de uma só classe, a trabalhadora. Uniformes diferenciam estudantes e trabalhadores, mas o ponto de partida, a placa indicadora, não diferencia ninguém. Todos esperam o mesmo ônibus. Uns mais ansiosos que outros. Uns mais preocupados que outros. Não sei se a preocupação era por atraso ao trabalho e/ou estudo, ou simplesmente, pela batalha que logo seria travada – brigar por um assento – afinal, o número de pessoas era superior ao número de bancos daquele ônibus branco com linhas laterais azuis e vermelhas.

Eu também entrei na briga por um lugar ao sol, leia-se, por um banco no ônibus. Acho que por sorte, a porta traseira parou em minha direção. Aí, caminhei ao seu encontro. Está certo, vou confirmar, levei um empurrão básico ao subir, pois se não tivesse levado não teria graça. O mais importante, saí vitorioso na briga. Conseguí sentar.

Infelizmente, dezenas seguiram o percurso em pé. Isso já é vantajoso. Outros não conseguiram entrar. A lei da física é clara, dois corpos não ocupam o mesmo lugar. Assim, os derrotados na batalha matinal ficaram no terminal a espera do próximo round.

Sentei no primeiro banco logo após a porta, na penúltima fila. Pela janela vi a agonia de uma derrotada. Ela não tinha chance nenhuma de vencer, mas lutou. Carregava consigo uma caixa branca com letras azuis que antes guardara um ventilador. Como não estava com a minha “espada justiceira”, sem a minha “visão além do alcance”, não posso afirmar o que tinha dentro daquela caixa. Uma coisa posso dizer, não era um ventilador. O esforço que aquela mulher de rosto cansado fez para deixar a caixa ao chão demonstrou isso.

Além da caixa branca, aquela senhora derrotada no primeiro round, carregava dois rolos de corda de cor marrom amarrados com um fio branco, um aro de bicicleta não muito brilhoso e duas crianças, assim como ela, negras. Sem entender muito a batalha, as duas crianças ajudaram a mãe a colocar os dois rolos de corda e o aro da bicicleta sobre a caixa branca com letreiros azuis.

Aquela mulher qual não sei a idade, muito menos o nome e o endereço, olhou para o ônibus, depois para seus pertences (incluindo os filhos) e pensou. Não sei o que ela pensou. Mas pelo mover de seus lábios falou aos filhos:

- Fiquem aqui.

Em pensamento deve ter concluído:

- Daqui a meia hora vem outro.

E assim esperou. Não sei em qual round aquela mulher, que não tem cara de Maria, venceu a batalha. Não sei que horas chegou ao seu destino. Nem sei se chegou.

Durante o percurso os passageiros foram descendo. O ônibus lotado foi esvaziando-se. Eu e mais quatro passageiros, um homem e três mulheres, chegamos ao final do trajeto. As cadeiras cinzas, antes bastante disputadas, agora sem passageiros. No terminal do Centro de Aracaju estava marcado um novo round. Agora o ônibus fazendo seu itinerário inverso, com novos gladiadores e os mesmos juízes (o motorista e o cobrador), ambos com o mesmo uniforme – camisa azul, calça e sapatos pretos. O que os diferenciava eram as posições que um cada ocupava no interior do ônibus e o nome que exibiam nos crachás.