sexta-feira, 22 de maio de 2009

O anônimo


E lá vem ele, como em todos os sábados à tarde, anunciando em gritos fortes a sua venda. Da janela do meu quarto, entres as folhas das arvores, podia ver ao longe seu avental engomado, onde o branco contrastava com a cor de sua pele. Sem buzina ou outro instrumento que emitisse som, era com seus gritos fortes que ganhava atenção dos moradores. O anuncio atraia seus fregueses, que assim com eu, iam à janela e pediam para que esperasse, enquanto descia as escadas do prédio pensava qual sabor comprar.

Entre cada iguaria vendida fazia uma brincadeira com seus fregueses, sem perder o respeito e a simpatia. Seu sorriso era permanente. Não me lembro um sábado se quer que o visse sem esse semblante de alegria. Nem mesmo o dia em que um freguês derramou leite condensado em seu avental, ele tirou o sorriso do rosto. Ele deveria ficar um pouco bravo, pois afinal de contas, nunca tinha visto um sujo em seu avental. Vestia-se bem, estava sempre limpo e engomado. Do chinelo à boina branca que usava na cabeça, tudo era simples, mas era limpo e bem cuidado.

O avental destacava-se não somente pelo branco alvo, mas pelo seu bolso vermelho, lugar onde ele guardava seu dinheiro. O bolso era vermelho justamente para que o dinheiro não transparecesse. Nesse bolso guardava o dinheiro trocado, no bolso de sua calça guardava as notas de valores maiores, segundo ele por uma questão de segurança. E ele estava certo, pois seu físico estava mais para o Salsicha do que para o Popeye.

Além dos seus 1,85m de altura, o que chamava atenção era sua chinela de couro, não pelo modelo, mas pelo seu desgaste das longas caminhadas que percorria, carregando nos braços seu tabuleiro. A preferência por uma chinela de couro revelava sua origem nordestina, já seu sotaque nem tanto, assim como nós paraense falava “égua” em toda e qualquer situação. Já era tão paraense que o seu time do coração estava estampado na cor de seu tabuleiro. O azul celeste confirmava que ele era torcedor do Payssandu. Eu, uma vez, perguntei por que ele tinha pintado só de azul celeste, já que a cor do seu time de coração também era o branco. Ele respondeu dizendo que economizou tinta, pois as tapiocas completavam a outra cor da bandeira bicolor.


Suas respostas humoradas, sempre vinham acompanhadas de um sorriso que ofuscava seu português falho. Falava de uma forma simples, bonita e sincera. Não demonstrava vergonha em ser um vendedor de tapioca. Sua forma de tratar as pessoas, seu jeito de conversar fazia com que a relação vendendor-cliente fosse abolida por um instante, parecia que era um amigo que vinha aos sábados lhe visitar. Era uma pessoa tão legal que nunca procurei saber seu nome, sempre o chamei de “amizade”. Ele sim, procurava chamar as pessoas pelo nome, principalmente aquelas que conhecia há bastante tempo. Esse seu jeito evidencia que há anos vendia tapioca de porta em porta, assim como suas rugas e seus cabelos grisalhos revelam seu tempo vivido.


Sempre que chegava próximo ao tabuleiro eu já ia dizendo “fale amizade”. Ele sorria e nem esperava fazer meu pedido, já me servia uma tapioca bem molhada ao leite de coco. Essa era minha preferida. Ela vinha enrolada na palha da bananeira. Teve um dia que o verde da palha refletiu no amarelo-dourado de sua aliança. Dei uma mordida na tapioca e falei que estava uma delicia. Ele, acariciando a aliança, disse que era sua “dona” que fazia. Mas que ele a ajudava.


As tapiocas eram de fato um delicia. A simpatia e alegria de um simples Senhor as tornavam mais atraentes a serem consumidas. Eu comia sempre mais de uma e levava uma para minha irmã. Chegando em casa, eu voltava para janela do meu quarto, via ele fechar seu tabuleiro, despedia-se das pessoas e continuava sua caminhada. Ao longe, podia-se ver o avental branco sumindo aos poucos e ouvia-se aquela voz forte gritando tapioqueiro, pausadamente.