quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A pianista

Ao andar pelas ruas de pedras portuguesas é como voltar no tempo e, ao mesmo tempo, presenciar o presente em seus desníveis e a permanente batalha da vida em não perder o equilíbrio. Assim refletia todos os dias a caminho da casa de Ana, minha professora de piano.

Ana aproveitou sua infância correndo, saltando e brincando nas ruas de pedras portuguesas. Os desníveis que me fazem refletir sobre a vida foram os mesmos que permitiram a ela encontrar o amor pelas notas musicais.

- Cada nota do piano é um desnível, cada acerto um ponto de equilíbrio, gosta de frisar. 

Caminhar pelas ruas de pedras portuguesas, equilibrando-se em um salto alto fino, ajudou a tornear as belas pernas de Ana. Foram suas pernas que começaram a fazer com que eu perdesse o ponto de equilíbrio e me perdesse nos desníveis das notas musicais.

Lembro a primeira vez que Ana sentou ao meu lado. O seu curto vestido azul deixava à mostra seu par de belas cochas. Firme, segurou minhas mãos e levemente as colocou sobre as teclas do piano. Eu não sabia se olhava para as teclas ou para suas cochas. Forcei a concentração, fechei os olhos e comecei a tocar. Manuseava as teclas carinhosamente como se fossem as cochas da professora. Quando estava em meio a minha viagem musical, Ana anuncia que aula estava chegando ao fim. Passou uns exercícios para eu treinar em casa. Despediu-se com um beijo em meu rosto.

As aulas ocorriam as segundas, quartas e sextas-feiras, sempre às 9h. A residência da pianista era um casarão do século XVIII, bem preservado. As aulas eram ministradas em uma enorme sala. Na parede, um grande painel pintado a óleo retratava sua família no jardim do casarão. Ana estava sentada na grama, trajava um vestido vermelho que contrastava com sua pele branca, um laço vermelho e branco na cabeça, seus cabelos pretos estavam cacheados e em seu colo segurava um gato malhado. O pai e mãe da pianista estavam sentados em uma cadeira de madeira, ambos com um sorriso tímido no rosto. Eram de uma família nobre, mas não gostavam de ostentar riqueza nem quando eram retratados. Essa simplicidade também era vista nos móveis da casa. Na sala, além do painel, tinha um armário simples de madeira, uma cadeira de repouso com três lugares, dois enormes jarros com plantas, e o piano. A pianista mantinha a mesma decoração após a morte de seus pais.

Ana era professora na principal escola de música da cidade, onde lecionava à tarde. Casada com um engenheiro civil, seu esposo passava poucos dias em casa, pois sempre estava viajando a serviço do governo federal. O casal não tinha filhos. Ana dedicava seu tempo à música. Os afazeres domésticos ficavam a cargo de Terezinha, sua segunda mãe. Terezinha morava com os pais de Ana antes mesmo que a professora viesse ao mundo.

- Peguei Ana no colo no dia do seu nascimento, relembra.

Assim que saí do casarão, comecei a contar o tempo para chegar quarta-feira, seria meu segundo dia de aula. Fiz todos os exercícios, repetia a todo instante o que aprendi no primeiro dia. A vontade de ver a professora aumentava e o tempo não passava. Os ponteiros do relógio moviam-se lentamente enquanto meu coração acelerava a cada vez que pensava em Ana. Lembrava do vestido azul, das suas cochas, da sua mão sobre a minha, do beijo de despedida no rosto.

O menino de 17 anos tinha encontrado na professora de piano o sentimento que ele classificou de amor. Eu não sei classificar que sentimento era. Mas se naquela idade eu disse a mim mesmo que era amor, então era. Na quarta-feira, fui cantando pelas ruas de pedras portuguesas, o sol daquela manhã estava radiante, o céu estava completamente azul. Vi que um senhor limpava o jardim de uma casa. Pedi a ele uma solitária rosa vermelha que estava em uma roseira próximo ao muro da rua. Acho que o jardineiro percebeu o meu olhar apaixonado e permitiu que eu a pegasse.

Quando Ana abriu a porta do casarão dei-lhe a rosa. Agradeceu com um sorriso e pediu que eu entrasse. Perguntou sobre os exercícios, respondi e fui tratando de mostrar que de fato tinha treinado. Ganhei um elogio e mais um sorriso da professora. Ana usava um vestido preto, um sapato preto com um salto pequeno, cabelos soltos e um batom vermelho de tom claro nos lábios.

Ana sentou-se ao meu lado e novamente segurou minhas mãos para colocá-las sobre as teclas do piano. Segurei firme e não soltei suas mãos. Ana olhou para mim e, assim como o jardineiro, viu em meus olhos o amor. Ficamos olhando um para o outro fixamente. Não resisti e roubei um beijo da professora.

Esse beijo durou seis meses. Ana foi a minha primeira mulher. Junto com o amor que sentia por ela, aumentou também meu amor pelo piano. No primeiro mês, nossos encontros amorosos ocorriam somente nos dias das aulas, depois foi ficando mais intenso. Queria ter aquela mulher de 35 anos mais perto de mim todos os dias. Quando o esposo chegava de viagem era sofredor. Somente assistia às aulas. Às vezes, ligeiramente, passava a mão em suas pernas. Quando ele viajava, os dias eram de festas e alegrias.

Era uma sexta-feira de primavera, aperto a campainha e quem abre a porta é Terezinha. Comunica que não haverá aula, pois a professora estava a caminho do porto com o marido, ia viajar e não tinha data para retornar. Saí desesperadamente correndo para o porto. Pela primeira vez não dei atenção aos desníveis das ruas de pedras portuguesas. Corria sem parar. Queria entender o motivo da viagem.Por que Ana não me informou? Alguma coisa estava errada. Ao chegar ao porto o navio estava partindo. Ao me ver, Ana acenou. Seu marido também me viu. Ele a abraçou e a levou para outra parte do navio, longe do meu olhar. Eu apenas chorei.