terça-feira, 14 de setembro de 2010

Por dentro da câmera escura

A cortina cinza é embalada pelo sopro do vento que passeia pelo fim do dia. Na janela aparece uma mulher com vista para o leste. Sua ida à janela foi rápida quanto à passagem do vento. Mal pude ver o rosto da mulher e seus cabelos pretos. Rapidamente, a moça fecha a janela. A cortina cinza acalma-se sem se despedir do vento. Uma ruptura brusca, tanto quanto a ruptura da mulher com o horizonte o qual não pode alcançar.

Ao baixar a vista, vi uma senhora com cabelos castanhos amarrados e um sorriso solto no rosto. Cercada por pessoas simples como ela, aquela senhora ajudava a revelar, em meio ao cenário artificial da moderna arquitetura, um cenário real e humano. Diferente da mulher do prédio luxuoso, do apartamento decorado com a cortina cinza, essa senhora sentada em um banco de ferro da parada de ônibus, não olhava para o leste, não buscava nenhum horizonte, só queria ir para casa.

Em meio ao congestionamento, carros, motocicletas, bicicletas e seres humanos. Estes últimos passavam despercebidos. A buzina é a pequena notável neste momento. Uns motoristas confundem sua função de alerta. O som emitido não tem o poder de retirar um carro parado à sua frente. Eu tenho muita fé e esperança que um dia os condutores dos veículos irão descobrir a verdadeira função da buzina e, com certeza, os congestionamentos serão menos estressantes. Enquanto esse dia não chega, a ignorância continuará reinando no espaço entre carros engarrafados e o ser humano continuará passando despercebido, no anonimato.

Na pressa da cidade, com seu ritmo acelerado, sempre correndo contra o tempo, as coisas mais óbvias, podemos dizer, as coisas mais simples, são apagadas do nosso campo de visão. O nosso olhar é construído, condicionado a não ver o óbvio. Dois meninos esforçavam-se no sinal de trânsito para serem percebidos. Somente gritar não basta. É preciso gesticular, mais que isso, é preciso apelar ao malabarismo. Assim fizeram, literalmente. Um subia na costa do outro e tentava, em posições e movimentos extravagantes, executar malabarismo com dois pedaços de madeira com as pontas decoradas com fios coloridos. A cada sinal fechado, o espetáculo era executado. Mesmo com a exuberância, o coração gelado do homem individual não era tocado. Poucos tinham sua sensibilidade remexida. Agora eu pergunto: quantos desses que por ali passaram e depois de assistir o show de malabarismo refletiu sobre a vida dessas duas crianças? O que as levou às ruas? O que significa a palavra futuro, ou melhor, a palavra vida para essas duas crianças? Os carros, as motocicletas, as bicicletas passam e seus condutores pensantes já não pensam mais. Enfim, são condicionados a não pensar e sim impulsionados pela pressa de chegar, só não sei onde. Até agora o ritmo imposto tem nos levado a lugar nenhum.

Segui meu percurso dentro da câmera escura procurando ver o mundo que me cerca de uma outra forma daquela imposta pela sociedade da individualidade e do coração gelado. Procurei ver coisas as quais sou impedido de ver, analisar e compreender. Busquei captar cenas, imagens e momentos com outro foco. Descobri que podemos sim ver o mundo para além da pressa, do ritmo acelerado, dos carros engarrafados, da buzina irritante.

Pare um dia. Entre na sua câmera escura. Escolha as verdadeiras imagens do seu mundo. Garanto a você, este é um bom exercício.