terça-feira, 3 de setembro de 2013

Pernilongo

Ao tentar escrever essas poucas palavras, sou azucrinado por um pernilongo que insiste zunir em meus ouvidos. Pergunto:

- Por que Noé colocou um casal de pernilongo na Arca?

sábado, 3 de agosto de 2013

Nas ruas do Pelourinho

Cresci correndo nas ruas de pedras do Pelourinho. Subia e descia ladeira sorrindo, catando, às vezes, reclamando. Quando ia para a escola, com a energia de menino, as ladeiras não eram obstáculos. Eram deslizes. Bastava mainha mandar ir a taberna do Seu Zé, logo reclamava:

- Subir a ladeira com a sacola é ruim.

Não tinha chiado certo, mãe mirava seus olhos arregalados, eu virava as costas e descia ladeira abaixo. A subida era um verdadeiro sacrifício. Quanto mais andava parecia que a moléstia da ladeira crescia ainda mais. Às vezes, ficava sentado na calçada de um casarão azul, nº 54. Ficava alguns minutos ali, buscando coragem para subir a ladeira, pois força eu tinha, contudo, a preguiça me dominava.

Morávamos na Rua Três de Maio com a Rua da Oração. A Praça da Sé era o palco principal de nossas estripulias. Binho era meu amigo, parceiro e irmão. Conhecíamos o Pelourinho na palma da nossa mão. Cada rua, cada ladeira, cada beco. Andávamos por todas partes, sabíamos os caminhos mais curtos para ir a qualquer lugar. A geografia era nossa ciência, sem mesmo entendê-la muito bem na escola.

Painho era carpinteiro. Francisco era seu nome. Chico da Carpintaria seu apelido. Um homem tranquilo, de poucas palavras. Saia de casa logo cedo e voltava quando sol estava se pondo. Trabalhava na carpintaria da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Todos os móveis da igreja era meu pai que fazia. Lembro que falava com admiração para Binho:

- Esse banco que estamos sentado foi meu pai que fez.

Um simples banco preto de madeira era para mim uma grande obra. O fato de ter sido feito pelo meu pai era valoroso demais para mim. Achava aquilo magnifico. O meu pai construindo obras para a casa de Deus.

Mainha era uma senhora bastante católica. Nas horas vagas contribuía com afazeres na igreja. Varria o chão, limpava as imagens dos santos, deixava brilhando os bancos de madeira feitos pelo seu esposo. Casou com meu pai nesta igreja e sempre dizia que a união tinha recebido a benção do Padre Luís. Famoso sacerdote que tinha ido embora para Ilhéus e deixara saudade a toda comunidade.

Eu, desde cedo não gostava da igreja. Assim como todos os meninos da minha época erámos forçados a comparecer à missa. O melhor momento era quando o padre dizia:

- Vão em paz, que o senhor nos acompanhe sempre!

Não respondíamos nem amém. Era uma só carreira da igreja à Praça da Sé. No fim de tarde dos sábados, a praça ficava lotado de meninos e meninas serelepes como eu e Binho. Rapazes e moças, já na adolescência, ficavam namorando nos bancos de ferro. A gente queria saber era de correr, inventar brincadeiras e tomar sorvete de tapioca.

Assim vivemos toda nossa infância. Escola, igreja, praças, ruas, ladeiras. Crescemos. A Praça da Sé deixou de ser nosso ponto de encontro. Conhecemos a bebida, o cigarro, as mulheres. Passei no vestibular de arquitetura. Binho passou em um concurso público estadual e não quis entrar na universidade. Seguimos descobrindo o Pelourinho da mesma forma quando crianças. Agora, os bares, os botecos e os bregas delineavam a nossa geografia.

A Ladeira da Montanha e a Ladeira da Conceição da Praia eram nossas ruas preferidas. Descobrimos os casarões coloridos e as mulheres que lá se abrigavam. Dolores fazia de tudo comigo na cama. Regina ensinou os prazeres à Binho. Foram quase três anos subindo e descendo as duas ladeiras. Eu gastava todo o dinheiro que conseguia com estágio que arranjei em uma empresa de engenharia. Adorava presentear Dolores. Pulseiras, cordões, brincos. Assim como o candomblé presenteia seus orixás, presenteava Dolores, a minha rainha.

Binho ganhava mais dinheiro do que eu, mas não tinha todo esse romantismo com Regina. Gastava todo o seu dinheiro no bar do bordel e no jogo de cartas. Madame Rosana, dona do casarão “Flor da Bahia”, o mimava todo. Sempre interessada no dinheiro que ele ia gastar em seu bordel. Chegou a apostar no jogo até um relógio de ouro que ganhara de um tio de presente.

Quando eu ia completar 22 anos meus pais morreram em um acidente de carro. Estavam indo para um evento da igreja em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo. Lembro até hoje o rosto pálido e trêmulo do padre ao me informar o ocorrido. Fiquei sem chão. Não sabia o que fazer. Fiquei uns dois meses recolhido em casa. O silêncio da Rua Três de Maio era meu conforto. Não queria sair, não queria ver ninguém. Não fui para a universidade, perdi o estágio. Tinha medo de ir à rua e ouvir o sino da igreja. Para mim, mainha tinha ido organizar o templo de Deus e painho estava lá cuidando dos móveis, consertando bancos e mesas, construindo novos armários. Porém, eles não voltavam. Até que um dia percebi que eles tinham partido de vez.

Sai de casa rumo à Ladeira da Conceição da Praia. Fui em busca do colo de Dolores, dos seus braços, da sua cama, do seu corpo. Madame Rosana informou que a minha rainha tinha mudado de bordel. Perguntou pelo meu amigo de infância e disse que ele tinha deixado uma dívida no bar. Eu não sabia de Binho. Durante esses dois meses não abri a porta de casa para ninguém, nem para ele, nem para o padre.

Segui em direção à Ladeira da Montanha. Na frente de um casarão reconheci Matilde, prostituta amiga de Dolores.  Informou que minha rainha estava na área, mas não sabia informar o certo em qual casarão. Sentei na calçada, como no tempo de menino quando subia a ladeira com a sacola cheia de mercadorias do mercadinho do Seu Zé. Agora não pedia coragem para seguir adiante. Pedia força e sorte. Precisava encontrar Dolores. Entrei em um casarão azul, com duas grande janelas abertas, decoradas com cortinas vermelhas, com vista à Baia de Todos os Santos. No som rolava aquele brega rasgado, que falava do fim de um relacionamento, o homem apaixonado que mesmo corneado queria a amada de volta. Alguns casais dançavam no salão. As mesas quase todas ocupadas. No bar, uma loira alta servia as bebidas. Caminhando em direção ao balcão, vejo Dolores sentada em uma mesa acompanhada de outra mulher. Ela me olhou. Vi um brilho nos seus olhos. Sei que ela não viu nenhum brilho nos meus. Enxergou em sua frente um homem barbudo, cabelo despenteado, dominado pela solidão.

Dolores veio ao me encontro. Não questionou meu sumiço, nem minha aparência. Me deu um forte abraço como se soubesse que precisa de seu amparo. Beijei seus lábios carnudos lambuzando meu rosto com o seu batom vermelho. Dormimos juntos no bordel naquele casarão pela última vez. Até hoje, Dolores mora comigo na Rua Três de Maio.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Desassossego


Quando Fernando Pessoa estava escrevendo as pequenas prosas para o Livro do Desassossego não estava buscando falar sobre si, sobre o que ele era. Estava tentando decifrar o que ele não foi.

Falar o que o somos e o que vivemos é muito mais fácil. Basta apenas exercitar a mente lembrando o ocorrido, voltando ao passado. Falar sobre o que não fomos e queríamos ser é mais difícil. Exige criatividade. É preciso inventar o não ocorrido. Construir seqüências de fatos não executados. Criar cenas não realizadas, apenas desejadas.

Escrever aquilo que queríamos ser, pode passar a impressão de que é mais prazeroso. Afinal, vamos estar registrando em palavras os devaneios que circulam em nossa mente. Estaremos colocando no papel um projeto de vida que pensamos e desejamos. Depois de escrito, ao ler o desejado sentiremos uma dor, pois a vida que temos não é aquela que inventamos.

A realidade, por mais dura que seja, precisa ser encarada de frente. Não necessariamente precisamos descrevê-la de uma forma fria, seca, áspera.  A realidade também tem seu lado literário. O cotidiano pode ser expresso por um ponto de vista mais simples e ao mesmo tempo rico. A realidade, diferente do desejo e do sonho que permite a gente voar pelas nuvens, exige, unicamente, que estejamos com os pés no chão. Por uma questão de segurança, claro. Afinal, o chão é mais firme que o céu.

Sertão do Rio Grande do Norte
16.02.2013

Três despedidas


Há tempos não presenciava cenas de despedidas. A separação é dolorida, ao mesmo tempo que pode ser tempo de renovação. O pai e mãe de um jovem, que deve ter uns 17 anos de idade, choravam abraçando seu menino. Este também revelava um pouco de tristeza, porém, era uma tristeza com pintadas de alegria. Alegria pela viagem, por um momento novo que iniciava, por um mundo e estradas que descobriria.

Um jovem beijava sua namorada como se fosse o último encontro. As lágrimas desciam em seus rostos. O beijo prolongava-se na mesma proporção em que as gotas lacrimais caiam encharcando e deixando suculento o encontro labial dos apaixonados. Ela partiu. Ele ficou. Eles partiram. O próximo encontro, incerto. O mundo gira, as horas passam, a vida muda. Mas pelo carinho trocado posso afirmar que buscarão se reencontrar logo.

A mãe junta os dois filhos e o esposo, forma um pequeno circulo, ora. Consigo ouvir alguns sussurros onde a mãe pede proteção à Deus. Solicita que a viagem ocorra de forma tranquila e segura. Bem como, pede proteção ao esposo e ao filho mais velho que não viajariam. Depois, ela beija o rosto de cada um.

Três cenas de despedida. Três ausências diferentes. A dor da partida depende de quem  vai partir e do tempo que a ausência durará. Idas e vindas. Esse é o movimento constante da história humana. A vida não tem graça sem este movimento. Tempo, espaço, relatividade: trinca que decifra a dor e a felicidade da partida. Felicidade, sim. É em busca dela que nos movemos.

Fortaleza/CE
16.02.2013

Na companhia da lua


Poucas as vezes estive tão perto da lua. Muitas viagens em avião, realizei. Nunca a lua esteve ao meu lado como companhia. Os motivos, talvez, pela maioria das vezes não ter conseguido o assento à janela ou pelo simples fato da lua não ter dado o ar da graça.

Estou sentado na poltrona 28F, mas a minha poltrona é a 28E. De Fortaleza à Recife estive entre dois homens. Um loiro, alto, corpudo, não era brasileiro, falava inglês. O outro, um senhor, brasileiro, branco, baixo, cabelos grisalhos, lia uma material sobre filmagens. A poltrona 28F pertencia ao segundo.

Durante a escala no aeroporto do Recife, meus vizinhos de poltrona desceram. Fiquei com três assentos só pra mim. Poucas pessoas subiram ao avião. Nenhum desses poucos passageiros sentou ao meu lado. Assim, mudei para a poltrona 28F.

A decolagem foi autorizada, avião acelerado, céu à vista. Olho pela janela lá está. A lua brilha linda e esplendorosa. Fiquei observando seu brilho. Nunca tinha me sentido tão próximo à ela. Tive vontade de tocá-la. Mas que isso, tive vontade de sentar sobre ela de mãos dadas com o meu amor. Queria cantar as canções de roda que embalaram minha infância e fazer uma grande ciranda com meus irmãos e amigos.

Meus desejos não foram realizados e nem podiam. O avião tinha seu destino. A lua sentindo minhas vontades  resolveu me fazer companhia até à primeira capital do Brasil. Viajou ao lado da minha janela.


26/08/2012
No ar, voando entre Recife e Salvador

Vôo TAM-3891

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O velho e a criança


O sol forte obrigou aquele senhor e a criança procurar uma sombra para repousar. Era o último sábado de junho de 2012, à sombra da mangueira, o idoso com mais de 70 anos, acompanhado de um menino de aproximadamente sete anos, sentou na calçada, passou a mão em seus cabelos brancos, olhou para frente e ficou refletindo sobre a vida. 

Pela janela do ônibus observei quando o idoso e a criança atravessaram a rua e  adentraram à área da rodoviária. Uma calça cinza desgastada e uma blusa branca de um tecido que um dia foi novo vestia o ancião. Seus pés tentavam ser calçados por uma sandália tipo havaiana de cor preta, velha tanto quanto a calça e a camisa. A idade pedia um apoio, o idoso caminhava amparado em um cabo de vassoura vermelho com o plástico preto em sua ponta, era a sua bengala. Em seu rosto, o cansaço era visível. As rugas, as marcas do tempo.

A criança não estava muito atenta ao idoso. Estava preocupada em comer. O relógio marcava 12:05h. Saboreava um salgado, desses vendido nas esquinas, acompanhado de um suco de cor clara, o qual não consegui decifrar, com o suor escorrendo em seu rosto de pele negra. Depois de atravessar a rua sentou na calçada junto ao idoso sob a sombra da mangueira, continuava mordendo o salgado e ingerindo o suco. Usava uma calça jeans azul, vestia uma blusa vermelha, em suas costas carregava uma mochila preta com detalhes azul, combinando com a cor da sua havaiana.

O idoso falava algumas palavras ao menino. Ele respondia. Era uma conversa com frases curtas. Parece que poucas palavras são necessárias para que se compreendam. Acho que o menino deveria ser neto ou bisneto daquele senhor. O que me chamou atenção foi fato de que ao avançar da idade precisamos de suportes físicos como uma muleta, mesmo uma improvisada como um cabo de vassoura. Como também precisamos de suportes humanos, mesmo que seja uma criança de sete anos que está mais preocupada em comer seu salgado e saborear seu suco.

O ônibus seguiu viagem, a próxima parada seria Fortaleza, meu destino. Fiquei olhando atentamente para os dois até minha vista não mais alcança-los. No fundo fiquei me perguntando como será minha bengala? Quem será meu acompanhante? A velhice vem, assim espero.

Fortaleza/CE, 01 de junho de 2012

Ônibus, estrada e serão

Não sei onde estou. No mapa, o google informa que estou no sertão do Rio Grande do Norte. Uma bola azul pisca constantemente como quem diz "oi, você está aqui". Não sei se quero saber onde estou. O que interessa saber a localização geográfica, a rodovia, o quilometro, latitude e longitude se estou preso dentro de ônibus azul com vidro fumê?

A terra árida, os rios sem águas, o verde que resiste ao longe confirmam que estou no sertão. Mas isso pouco vale, pois os vidros não deixam eu sentir o cheiro da terra, o vento bater em meu rosto, muitos menos ouvir o canto do carcará, a ave que pega, mata e come.

O que tenho ao meu redor é um completo silêncio, é como se eu estivesse só. A pessoa ao meu lado direito dorme, assim como 90% dos demais presente no veículo. Ao meu lado esquerdo, uma senhora negra, cabelos escovados, coberta com uma manta xadrez, ler para ver o tempo passar. Acho que é a única que está preenchendo seu tempo com algo mais útil. Seu óculos charmoso de cor marrom ajuda na leitura ao mesmo tempo em que deixa sua face mais bonita.

A minha frente, a vaga destinada aos idosos está vazia. Pela madrugada, um senhor que falava alto e tossia como uma guariba, desceu no sertão pernambucano. Sem sua presença o vazio aumentou sua proporção. A tosse do idoso pelo menos me avisava que não estava sozinho.

Neste momento, esse é o terceiro motorista que nos conduz. Nunca soubemos o nome de nenhum deles. Nunca se apresentaram, não disseram boa tarde, boa noite, bom dia, desde a partida em Aracaju. A única coisa que sei deste que nos conduz é que gosta do Queen e forró pé de serra, sonoridade que rolou ao amanhecer.

São 09:14h, o google informa no mapa que estamos em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Agora que vamos tomar café. Por isso, vou parar de escrever, estou com fome.

16/07/2012

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Madrugada, jazz e blue

   A madrugada chega sorridente. Já não sei se quero seu sorriso. Foram tantas noites correndo atrás desse momento.
   Agora sinto o vento frio bater em meu rosto. A janela treme como se fosse sua primeira contração. Eu sigo virando os copos, bebendo, fumando e pensando.
   A noite é curta. Grande é a vontade de não ver a noite acabar. Esse é meu desejo. É isso que eu quero.
   O jazz que rola no som não me deixa dormir. Mal sabe ele, cada acorde faz com que eu vire os copos em uma velocidade cada mais avançada. Cada copo que viro, lembro de Amy Winehouse. A única que nesse pequeno espaço do novo século fez a gente sentir que o jazz e o blues são imortais.
   Por isso, bebo. Beber vigora a música e renova a madrugada. Por isso, bebo!

quinta-feira, 22 de março de 2012

Remédio

Saudade...
Se seu problema fosse a dor, tomaria Doril.
Sei que a dor poderia voltar, mas também saberia um remédio para amenizá-lá por alguns instantes.
A solução seria você [saudade] não existir.
Só não sei se a vida teria sabor sem a sua presença, sem a sua dor.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A pianista

Ao andar pelas ruas de pedras portuguesas é como voltar no tempo e, ao mesmo tempo, presenciar o presente em seus desníveis e a permanente batalha da vida em não perder o equilíbrio. Assim refletia todos os dias a caminho da casa de Ana, minha professora de piano.

Ana aproveitou sua infância correndo, saltando e brincando nas ruas de pedras portuguesas. Os desníveis que me fazem refletir sobre a vida foram os mesmos que permitiram a ela encontrar o amor pelas notas musicais.

- Cada nota do piano é um desnível, cada acerto um ponto de equilíbrio, gosta de frisar. 

Caminhar pelas ruas de pedras portuguesas, equilibrando-se em um salto alto fino, ajudou a tornear as belas pernas de Ana. Foram suas pernas que começaram a fazer com que eu perdesse o ponto de equilíbrio e me perdesse nos desníveis das notas musicais.

Lembro a primeira vez que Ana sentou ao meu lado. O seu curto vestido azul deixava à mostra seu par de belas cochas. Firme, segurou minhas mãos e levemente as colocou sobre as teclas do piano. Eu não sabia se olhava para as teclas ou para suas cochas. Forcei a concentração, fechei os olhos e comecei a tocar. Manuseava as teclas carinhosamente como se fossem as cochas da professora. Quando estava em meio a minha viagem musical, Ana anuncia que aula estava chegando ao fim. Passou uns exercícios para eu treinar em casa. Despediu-se com um beijo em meu rosto.

As aulas ocorriam as segundas, quartas e sextas-feiras, sempre às 9h. A residência da pianista era um casarão do século XVIII, bem preservado. As aulas eram ministradas em uma enorme sala. Na parede, um grande painel pintado a óleo retratava sua família no jardim do casarão. Ana estava sentada na grama, trajava um vestido vermelho que contrastava com sua pele branca, um laço vermelho e branco na cabeça, seus cabelos pretos estavam cacheados e em seu colo segurava um gato malhado. O pai e mãe da pianista estavam sentados em uma cadeira de madeira, ambos com um sorriso tímido no rosto. Eram de uma família nobre, mas não gostavam de ostentar riqueza nem quando eram retratados. Essa simplicidade também era vista nos móveis da casa. Na sala, além do painel, tinha um armário simples de madeira, uma cadeira de repouso com três lugares, dois enormes jarros com plantas, e o piano. A pianista mantinha a mesma decoração após a morte de seus pais.

Ana era professora na principal escola de música da cidade, onde lecionava à tarde. Casada com um engenheiro civil, seu esposo passava poucos dias em casa, pois sempre estava viajando a serviço do governo federal. O casal não tinha filhos. Ana dedicava seu tempo à música. Os afazeres domésticos ficavam a cargo de Terezinha, sua segunda mãe. Terezinha morava com os pais de Ana antes mesmo que a professora viesse ao mundo.

- Peguei Ana no colo no dia do seu nascimento, relembra.

Assim que saí do casarão, comecei a contar o tempo para chegar quarta-feira, seria meu segundo dia de aula. Fiz todos os exercícios, repetia a todo instante o que aprendi no primeiro dia. A vontade de ver a professora aumentava e o tempo não passava. Os ponteiros do relógio moviam-se lentamente enquanto meu coração acelerava a cada vez que pensava em Ana. Lembrava do vestido azul, das suas cochas, da sua mão sobre a minha, do beijo de despedida no rosto.

O menino de 17 anos tinha encontrado na professora de piano o sentimento que ele classificou de amor. Eu não sei classificar que sentimento era. Mas se naquela idade eu disse a mim mesmo que era amor, então era. Na quarta-feira, fui cantando pelas ruas de pedras portuguesas, o sol daquela manhã estava radiante, o céu estava completamente azul. Vi que um senhor limpava o jardim de uma casa. Pedi a ele uma solitária rosa vermelha que estava em uma roseira próximo ao muro da rua. Acho que o jardineiro percebeu o meu olhar apaixonado e permitiu que eu a pegasse.

Quando Ana abriu a porta do casarão dei-lhe a rosa. Agradeceu com um sorriso e pediu que eu entrasse. Perguntou sobre os exercícios, respondi e fui tratando de mostrar que de fato tinha treinado. Ganhei um elogio e mais um sorriso da professora. Ana usava um vestido preto, um sapato preto com um salto pequeno, cabelos soltos e um batom vermelho de tom claro nos lábios.

Ana sentou-se ao meu lado e novamente segurou minhas mãos para colocá-las sobre as teclas do piano. Segurei firme e não soltei suas mãos. Ana olhou para mim e, assim como o jardineiro, viu em meus olhos o amor. Ficamos olhando um para o outro fixamente. Não resisti e roubei um beijo da professora.

Esse beijo durou seis meses. Ana foi a minha primeira mulher. Junto com o amor que sentia por ela, aumentou também meu amor pelo piano. No primeiro mês, nossos encontros amorosos ocorriam somente nos dias das aulas, depois foi ficando mais intenso. Queria ter aquela mulher de 35 anos mais perto de mim todos os dias. Quando o esposo chegava de viagem era sofredor. Somente assistia às aulas. Às vezes, ligeiramente, passava a mão em suas pernas. Quando ele viajava, os dias eram de festas e alegrias.

Era uma sexta-feira de primavera, aperto a campainha e quem abre a porta é Terezinha. Comunica que não haverá aula, pois a professora estava a caminho do porto com o marido, ia viajar e não tinha data para retornar. Saí desesperadamente correndo para o porto. Pela primeira vez não dei atenção aos desníveis das ruas de pedras portuguesas. Corria sem parar. Queria entender o motivo da viagem.Por que Ana não me informou? Alguma coisa estava errada. Ao chegar ao porto o navio estava partindo. Ao me ver, Ana acenou. Seu marido também me viu. Ele a abraçou e a levou para outra parte do navio, longe do meu olhar. Eu apenas chorei.