sábado, 3 de agosto de 2013

Nas ruas do Pelourinho

Cresci correndo nas ruas de pedras do Pelourinho. Subia e descia ladeira sorrindo, catando, às vezes, reclamando. Quando ia para a escola, com a energia de menino, as ladeiras não eram obstáculos. Eram deslizes. Bastava mainha mandar ir a taberna do Seu Zé, logo reclamava:

- Subir a ladeira com a sacola é ruim.

Não tinha chiado certo, mãe mirava seus olhos arregalados, eu virava as costas e descia ladeira abaixo. A subida era um verdadeiro sacrifício. Quanto mais andava parecia que a moléstia da ladeira crescia ainda mais. Às vezes, ficava sentado na calçada de um casarão azul, nº 54. Ficava alguns minutos ali, buscando coragem para subir a ladeira, pois força eu tinha, contudo, a preguiça me dominava.

Morávamos na Rua Três de Maio com a Rua da Oração. A Praça da Sé era o palco principal de nossas estripulias. Binho era meu amigo, parceiro e irmão. Conhecíamos o Pelourinho na palma da nossa mão. Cada rua, cada ladeira, cada beco. Andávamos por todas partes, sabíamos os caminhos mais curtos para ir a qualquer lugar. A geografia era nossa ciência, sem mesmo entendê-la muito bem na escola.

Painho era carpinteiro. Francisco era seu nome. Chico da Carpintaria seu apelido. Um homem tranquilo, de poucas palavras. Saia de casa logo cedo e voltava quando sol estava se pondo. Trabalhava na carpintaria da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Todos os móveis da igreja era meu pai que fazia. Lembro que falava com admiração para Binho:

- Esse banco que estamos sentado foi meu pai que fez.

Um simples banco preto de madeira era para mim uma grande obra. O fato de ter sido feito pelo meu pai era valoroso demais para mim. Achava aquilo magnifico. O meu pai construindo obras para a casa de Deus.

Mainha era uma senhora bastante católica. Nas horas vagas contribuía com afazeres na igreja. Varria o chão, limpava as imagens dos santos, deixava brilhando os bancos de madeira feitos pelo seu esposo. Casou com meu pai nesta igreja e sempre dizia que a união tinha recebido a benção do Padre Luís. Famoso sacerdote que tinha ido embora para Ilhéus e deixara saudade a toda comunidade.

Eu, desde cedo não gostava da igreja. Assim como todos os meninos da minha época erámos forçados a comparecer à missa. O melhor momento era quando o padre dizia:

- Vão em paz, que o senhor nos acompanhe sempre!

Não respondíamos nem amém. Era uma só carreira da igreja à Praça da Sé. No fim de tarde dos sábados, a praça ficava lotado de meninos e meninas serelepes como eu e Binho. Rapazes e moças, já na adolescência, ficavam namorando nos bancos de ferro. A gente queria saber era de correr, inventar brincadeiras e tomar sorvete de tapioca.

Assim vivemos toda nossa infância. Escola, igreja, praças, ruas, ladeiras. Crescemos. A Praça da Sé deixou de ser nosso ponto de encontro. Conhecemos a bebida, o cigarro, as mulheres. Passei no vestibular de arquitetura. Binho passou em um concurso público estadual e não quis entrar na universidade. Seguimos descobrindo o Pelourinho da mesma forma quando crianças. Agora, os bares, os botecos e os bregas delineavam a nossa geografia.

A Ladeira da Montanha e a Ladeira da Conceição da Praia eram nossas ruas preferidas. Descobrimos os casarões coloridos e as mulheres que lá se abrigavam. Dolores fazia de tudo comigo na cama. Regina ensinou os prazeres à Binho. Foram quase três anos subindo e descendo as duas ladeiras. Eu gastava todo o dinheiro que conseguia com estágio que arranjei em uma empresa de engenharia. Adorava presentear Dolores. Pulseiras, cordões, brincos. Assim como o candomblé presenteia seus orixás, presenteava Dolores, a minha rainha.

Binho ganhava mais dinheiro do que eu, mas não tinha todo esse romantismo com Regina. Gastava todo o seu dinheiro no bar do bordel e no jogo de cartas. Madame Rosana, dona do casarão “Flor da Bahia”, o mimava todo. Sempre interessada no dinheiro que ele ia gastar em seu bordel. Chegou a apostar no jogo até um relógio de ouro que ganhara de um tio de presente.

Quando eu ia completar 22 anos meus pais morreram em um acidente de carro. Estavam indo para um evento da igreja em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo. Lembro até hoje o rosto pálido e trêmulo do padre ao me informar o ocorrido. Fiquei sem chão. Não sabia o que fazer. Fiquei uns dois meses recolhido em casa. O silêncio da Rua Três de Maio era meu conforto. Não queria sair, não queria ver ninguém. Não fui para a universidade, perdi o estágio. Tinha medo de ir à rua e ouvir o sino da igreja. Para mim, mainha tinha ido organizar o templo de Deus e painho estava lá cuidando dos móveis, consertando bancos e mesas, construindo novos armários. Porém, eles não voltavam. Até que um dia percebi que eles tinham partido de vez.

Sai de casa rumo à Ladeira da Conceição da Praia. Fui em busca do colo de Dolores, dos seus braços, da sua cama, do seu corpo. Madame Rosana informou que a minha rainha tinha mudado de bordel. Perguntou pelo meu amigo de infância e disse que ele tinha deixado uma dívida no bar. Eu não sabia de Binho. Durante esses dois meses não abri a porta de casa para ninguém, nem para ele, nem para o padre.

Segui em direção à Ladeira da Montanha. Na frente de um casarão reconheci Matilde, prostituta amiga de Dolores.  Informou que minha rainha estava na área, mas não sabia informar o certo em qual casarão. Sentei na calçada, como no tempo de menino quando subia a ladeira com a sacola cheia de mercadorias do mercadinho do Seu Zé. Agora não pedia coragem para seguir adiante. Pedia força e sorte. Precisava encontrar Dolores. Entrei em um casarão azul, com duas grande janelas abertas, decoradas com cortinas vermelhas, com vista à Baia de Todos os Santos. No som rolava aquele brega rasgado, que falava do fim de um relacionamento, o homem apaixonado que mesmo corneado queria a amada de volta. Alguns casais dançavam no salão. As mesas quase todas ocupadas. No bar, uma loira alta servia as bebidas. Caminhando em direção ao balcão, vejo Dolores sentada em uma mesa acompanhada de outra mulher. Ela me olhou. Vi um brilho nos seus olhos. Sei que ela não viu nenhum brilho nos meus. Enxergou em sua frente um homem barbudo, cabelo despenteado, dominado pela solidão.

Dolores veio ao me encontro. Não questionou meu sumiço, nem minha aparência. Me deu um forte abraço como se soubesse que precisa de seu amparo. Beijei seus lábios carnudos lambuzando meu rosto com o seu batom vermelho. Dormimos juntos no bordel naquele casarão pela última vez. Até hoje, Dolores mora comigo na Rua Três de Maio.

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