sábado, 1 de agosto de 2009

Santa Chuva

Lembro perfeitamente dos meus olhos acompanhando a descida do barquinho de papel na correnteza formada pelas águas da chuva. Fazíamos dezenas deles. Todos seguiam o mesmo rumo, correnteza abaixo. Foram feitos para isso. Porém, quando soltávamos, nossos olhos acompanhavam o movimento de descida como se não quiséssemos que partissem ou como se estivéssemos atentos para que a descida fosse perfeita, pois, sempre ocorriam pequenos atropelos pelo percurso. Seguíamos até o encontro das águas com as tubulações. Voltávamos e soltávamos outro e, assim, repetíamos até acabar os brinquedos, feitos com restos de jornais e revistas, produzidos naquela tarde chuvosa.

Água, muita água. Corríamos às biqueiras das casas. A água caia com força em nossas cabeças. O revezamento era feito e todos passavam por debaixo delas. A disputa era pelas mais altas. Quem chegava primeiro comandava a área e quem chegava por último era a mulher do padre.

A chuva permitia que a criatividade invadisse nossas mentes. Construíamos, com muita areia e pedaços de pau, grandes represas. Éramos verdadeiros engenheiros construindo barragens. A descida da água era controlada por nós. Na verdade, controlávamos até quando a água queria, muitas vezes, ela se rebelava e impunha sua força passando por cima da nossa construção. Fazíamos tudo de novo, com mais areia e mais pedaços de pau. Momentaneamente, controlávamos a força da natureza.

Chuva forte combinava com manga no chão. Corríamos ao quintal da minha casa, ao da minha tia e dos vizinhos. A chuva permitia por um instante a propriedade comunal das terras e das frutas. Para nós eram comunais, para seus donos, não. Mas a aventura não tinha limites. Muros, cercas e cachorros eram superados. Nada que um bom trabalho em equipe não resolvesse. Comíamos as mangas, muitas vezes, rindo dos obstáculos que superamos para apanhá-las. Acho que os sacrifícios às tornavam mais saborosas.

Nem sempre aproveitei a chuva dessa maneira. Muitas vezes, fiquei em casa, deitado, embrulhado em um bom lençol grosso, ouvindo o barulho nas telhas e sentindo seus respingos. O som emitido era uma verdadeira sinfonia onde as notas musicais não podiam ser decifradas, só ouvidas e guardadas na mente. Era um som que embalava sonos e sonhos profundos. Chuva, som, sono e sonho.

Os raios e trovões, chuva ou outra, davam o ar da graça. Por trás das arvores, podíamos ver o lindo clarão de luz e ao longe seu estrondo. A fé cristã entrava em cena. Jogávamos no chão do quintal a palha abençoada pelo padre no Domingo de Ramos. Minha mãe dizia que era para proteger nossa casa de um raio. Mas, eu ficava olhando o lindo clarão dos raios e em meu olhar inocente enxergava mais beleza que perigo. Raios, trovões, clarões.

Sinto saudades dos banhos nas chuvas da minha Amazônia. Dos barquinhos de papel, das biqueiras, das represas de areia, das mangas expropriadas e da velha palha abençoada. No Pará é assim, sempre chuva, santa chuva.



“vai chover
de novo
deu na Tevê”
(Marcelo Camelo)

Um comentário:

  1. Muito lindo, de fato esse texto mecheu comigo, lembrei da minha infância querida.
    Parabéns pelo texto.

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