Cresci
correndo nas ruas de pedras do Pelourinho. Subia e descia ladeira sorrindo,
catando, às vezes, reclamando. Quando ia para a escola, com a energia de menino,
as ladeiras não eram obstáculos. Eram deslizes. Bastava mainha mandar ir a
taberna do Seu Zé, logo reclamava:
-
Subir a ladeira com a sacola é ruim.
Não
tinha chiado certo, mãe mirava seus olhos arregalados, eu virava as costas e
descia ladeira abaixo. A subida era um verdadeiro sacrifício. Quanto mais
andava parecia que a moléstia da ladeira crescia ainda mais. Às vezes, ficava
sentado na calçada de um casarão azul, nº 54. Ficava alguns minutos ali,
buscando coragem para subir a ladeira, pois força eu tinha, contudo, a preguiça
me dominava.
Morávamos
na Rua Três de Maio com a Rua da Oração. A Praça da Sé era o palco principal de
nossas estripulias. Binho era meu amigo, parceiro e irmão. Conhecíamos o
Pelourinho na palma da nossa mão. Cada rua, cada ladeira, cada beco. Andávamos
por todas partes, sabíamos os caminhos mais curtos para ir a qualquer lugar. A
geografia era nossa ciência, sem mesmo entendê-la muito bem na escola.
Painho
era carpinteiro. Francisco era seu nome. Chico da Carpintaria seu apelido. Um
homem tranquilo, de poucas palavras. Saia de casa logo cedo e voltava quando
sol estava se pondo. Trabalhava na carpintaria da Igreja da Ordem Terceira de
São Francisco. Todos os móveis da igreja era meu pai que fazia. Lembro que
falava com admiração para Binho:
-
Esse banco que estamos sentado foi meu pai que fez.
Um
simples banco preto de madeira era para mim uma grande obra. O fato de ter sido
feito pelo meu pai era valoroso demais para mim. Achava aquilo magnifico. O meu
pai construindo obras para a casa de Deus.
Mainha
era uma senhora bastante católica. Nas horas vagas contribuía com afazeres na
igreja. Varria o chão, limpava as imagens dos santos, deixava brilhando os
bancos de madeira feitos pelo seu esposo. Casou com meu pai nesta igreja e
sempre dizia que a união tinha recebido a benção do Padre Luís. Famoso
sacerdote que tinha ido embora para Ilhéus e deixara saudade a toda comunidade.
Eu,
desde cedo não gostava da igreja. Assim como todos os meninos da minha época
erámos forçados a comparecer à missa. O melhor momento era quando o padre
dizia:
-
Vão em paz, que o senhor nos acompanhe sempre!
Não
respondíamos nem amém. Era uma só carreira da igreja à Praça da Sé. No fim de
tarde dos sábados, a praça ficava lotado de meninos e meninas serelepes como eu
e Binho. Rapazes e moças, já na adolescência, ficavam namorando nos bancos de
ferro. A gente queria saber era de correr, inventar brincadeiras e tomar
sorvete de tapioca.
Assim
vivemos toda nossa infância. Escola, igreja, praças, ruas, ladeiras. Crescemos.
A Praça da Sé deixou de ser nosso ponto de encontro. Conhecemos a bebida, o
cigarro, as mulheres. Passei no vestibular de arquitetura. Binho passou em um
concurso público estadual e não quis entrar na universidade. Seguimos
descobrindo o Pelourinho da mesma forma quando crianças. Agora, os bares, os botecos
e os bregas delineavam a nossa geografia.
A
Ladeira da Montanha e a Ladeira da Conceição da Praia eram nossas ruas
preferidas. Descobrimos os casarões coloridos e as mulheres que lá se
abrigavam. Dolores fazia de tudo comigo na cama. Regina ensinou os prazeres à
Binho. Foram quase três anos subindo e descendo as duas ladeiras. Eu gastava
todo o dinheiro que conseguia com estágio que arranjei em uma empresa de
engenharia. Adorava presentear Dolores. Pulseiras, cordões, brincos. Assim como
o candomblé presenteia seus orixás, presenteava Dolores, a minha rainha.
Binho
ganhava mais dinheiro do que eu, mas não tinha todo esse romantismo com Regina.
Gastava todo o seu dinheiro no bar do bordel e no jogo de cartas. Madame Rosana,
dona do casarão “Flor da Bahia”, o mimava todo. Sempre interessada no dinheiro
que ele ia gastar em seu bordel. Chegou a apostar no jogo até um relógio de
ouro que ganhara de um tio de presente.
Quando
eu ia completar 22 anos meus pais morreram em um acidente de carro. Estavam
indo para um evento da igreja em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo.
Lembro até hoje o rosto pálido e trêmulo do padre ao me informar o ocorrido.
Fiquei sem chão. Não sabia o que fazer. Fiquei uns dois meses recolhido em
casa. O silêncio da Rua Três de Maio era meu conforto. Não queria sair, não
queria ver ninguém. Não fui para a universidade, perdi o estágio. Tinha medo de
ir à rua e ouvir o sino da igreja. Para mim, mainha tinha ido organizar o
templo de Deus e painho estava lá cuidando dos móveis, consertando bancos e
mesas, construindo novos armários. Porém, eles não voltavam. Até que um dia
percebi que eles tinham partido de vez.
Sai
de casa rumo à Ladeira da Conceição da Praia. Fui em busca do colo de Dolores,
dos seus braços, da sua cama, do seu corpo. Madame Rosana informou que a minha
rainha tinha mudado de bordel. Perguntou pelo meu amigo de infância e disse que
ele tinha deixado uma dívida no bar. Eu não sabia de Binho. Durante esses dois
meses não abri a porta de casa para ninguém, nem para ele, nem para o padre.
Segui
em direção à Ladeira da Montanha. Na frente de um casarão reconheci Matilde,
prostituta amiga de Dolores. Informou
que minha rainha estava na área, mas não sabia informar o certo em qual
casarão. Sentei na calçada, como no tempo de menino quando subia a ladeira com
a sacola cheia de mercadorias do mercadinho do Seu Zé. Agora não pedia coragem
para seguir adiante. Pedia força e sorte. Precisava encontrar Dolores. Entrei
em um casarão azul, com duas grande janelas abertas, decoradas com cortinas
vermelhas, com vista à Baia de Todos os Santos. No som rolava aquele brega
rasgado, que falava do fim de um relacionamento, o homem apaixonado que mesmo
corneado queria a amada de volta. Alguns casais dançavam no salão. As mesas
quase todas ocupadas. No bar, uma loira alta servia as bebidas. Caminhando em
direção ao balcão, vejo Dolores sentada em uma mesa acompanhada de outra
mulher. Ela me olhou. Vi um brilho nos seus olhos. Sei que ela não viu nenhum
brilho nos meus. Enxergou em sua frente um homem barbudo, cabelo despenteado,
dominado pela solidão.
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